As 100 últimas comunidades felizes do Mundo
No
planeta restam mais de uma centena de comunidades indígenas sem contato,
espalhadas por Amazônia, Papua Nova Guiné e Índia
Por Talita Bedinelli/Lola Hierro - São Paulo / Madri –30 DEZ
2018– Jornal El País (Espanha)
Tribos indígenas brasileiras – nativos: Assurini, Tapirajé, Kaiapó, Kapirapé, Rikbaktsa e Bororo-Boe. Mosaico de imagens: Agência Brasil/ Adaptação FN Café NEWS. |
Os sentineleses, a etnia que habita há milênios a
ilha de Sentinela do Norte, no arquipélago indiano de Andamã e Nicobar, se
tornaram há um mês protagonistas das primeiras páginas dos jornais
internacionais depois que alguns de seus membros supostamente assassinaram
John Allen Chau, de 26 anos. O missionário norte-americano pretendia chegar ao
pequeno território protegido com a intenção de evangelizar seus
habitantes, um dos povos em isolamento voluntário que existem no
mundo. Como os sentineleses, calcula-se que no planeta haja pelo menos cem
comunidades indígenas que vivem sem contato algum com outras civilizações.
Corria o mês de julho de 2014, quando, muito longe
da Índia, na fronteira entre Peru e o estado brasileiro
do Acre, três homens nus, com corte de cabelo estilo pajem e
os rostos pintados, se deixaram ver na margem de um rio e tentaram se comunicar
em um idioma que ninguém compreendia. Os gestos, por sua vez, eram familiares.
Um deles, por exemplo, colocava a mão na barriga, dando a entender que tinha
fome. Ao avistar um indivíduo com uma escopeta, advertiram com palavras depois
traduzidas: “Se nos fizerem mal, vamos lançar um feitiço sobre vocês”.
Esse momento, gravado em vídeo, foi a primeira
aparição conhecida de um grupo de indígenas da etnia sapanahua, que até então
tinha decidido viver isolada na selva amazônica. Seus
integrantes queriam evitar qualquer contato com o resto do mundo até que, ao
serem atacados por homens armados na parte peruana, se viram forçados a
abandonar suas aldeias.
Não seria o primeiro grupo a fugir devido a ameaças
de ambos os lados da fronteira. Nem o último. Em janeiro de 2015, três membros
da etnia awá-guajá que viviam isolados em uma reserva indígena no estado
do Maranhão, fizeram o mesmo, também buscando contato depois
de sofrerem um ataque.
Assim, vários desses povos estão emergindo da selva
amazônica devido ao avanço do corte ilegal de madeira e à invasão de seus territórios, o que os força a fugir de
suas casas e estabelecer contato com o resto da sociedade.
Mapa dos Povos Indígenas na Amazônia. Fonte: ONG Survival Internacional |
A Amazônia brasileira é a área com maior quantidade
de comunidades indígenas isoladas do mundo segundo a ONG Survival
International. A Fundação Nacional do Índio (Funai),
órgão do Governo brasileiro encarregado de proteger os mais de 800.000
indígenas que vivem no país, garante que há pelo menos 107 registros da
presença desses grupos, e perto de 30 deles são monitorados —à distância— por
parte da entidade. Os especialistas advertem, no entanto, que é preciso analisar
os dados com cuidado, porque não se baseiam em provas irrefutáveis já que o
isolamento dessas comunidades torna impossível realizar uma contagem confiável.
“É preciso pesquisar mais: há 10 anos se dizia no
Brasil que havia apenas 10 a 15 grupos e esse número aumentou muito, deve haver
mais [comunidades] do que se diz”, afirma Fiona Watson, especialista da Survival
International e grande conhecedora de povos não contatados.
Como é possível confirmar a existência de povos
indígenas não contatados? Para começar, é preciso defini-los. “São grupos que
não têm contato formal voluntário com a sociedade nacional. Sabem que existe o
mundo exterior e que têm vizinhos”, explica Watson. O Brasil não é o único país
que conta com a presença dessas comunidades.
O Peru está em
segundo lugar, com cerca de 15 a 20 povos isolados. Watson também destaca casos
como o do Paraguai, onde parte do povo ayoreo e outros clãs vivem
fora da mata tropical da Amazônia, na região do Chaco. “É um ambiente muito
diferente, mas há”, confirma a especialista. Na Bolívia, Equador e Colômbia
existem grupos menores, e na parte oeste de Papua Nova Guiné (Oceania) se sabe
da existência de vários povos, mesmo não se conseguindo estabelecer o número
nem os locais exatos em que habitam.
Abusos do exterior
“É muito perigoso penetrar em seu território desde
que a Indonésia [país fronteiriço] invadiu aquela região. Temos uma
pessoa que esteve ali [nas regiões não contatadas de Papua Nova Guiné], mas é
muito difícil entrar de novo, tudo está militarizado. Pensamos que há [essas
tribos] porque há anos falamos com as pessoas e dizem que existem, mas não
querem dar mais informações”, explica Watson.
O terceiro grupo de população localizada no mundo é
a anteriormente citada etnia sentinelesa, da Índia. “Este é o povo mais
isolado, porque vive em uma ilha e ninguém consegue entrar ali.
Eles protegem muito sua independência e são autossuficientes”,
descreve Watson. “O Governo da Índia fez uma aproximação há alguns anos e foi
rechaçado, então decidiu não forçar o contato. São felizes e em algumas fotos
se nota que estão fortes e sadios, têm dentes fantásticos. Demonstram que
tomaram a decisão correta de permanecer isolados porque não necessitam nada da
sociedade de fora, têm tudo em sua ilha, vivem bem”, opina Watson.
Em mais de uma ocasião, algumas dessas comunidades
isoladas que tiveram contato com o exterior há séculos, na verdade há cerca de
150 anos com os colonos que chegaram a várias regiões do Peru e da Amazônia.
“[As comunidades] foram escravizadas e obrigadas a trabalhar em condições
horríveis em plantações de borracha. Muita gente morreu”, descreve Watson. A
experiência ficou na memória histórica dessas comunidades, que acreditam hoje
que as pessoas de fora são ruins. Por isso decidem isolar-se, para sobreviver.
Ameaças e perigos
Os perigos dos que saem dessas comunidades
indígenas são muitos. No Brasil, madeireiros,
garimpeiros e traficantes usam a região da selva sem qualquer
preocupação diante da ausência de controle do Estado. E a atividade de grupos
criminosos se torna cada vez mais ousada.
Povos indígenas na Amazônia brasileira. Foto: Presidência da República 2014. |
Durante a madrugada de 22 de dezembro passado, uma
das três bases que protegem as comunidades isoladas, na Terra Indígena Vale do
Javari, na fronteira brasileira do Amazonas com o Peru, foi atacada a tiros diante da presença da polícia e da
Funai. Ninguém se feriu, mas o fato fez aumentar a preocupação das entidades de
proteção de comunidades indígenas que já temem as políticas que pode implantar
o presidente eleito do Brasil, o ultradireitista Jair Bolsonaro, que toma
posse na próxima terça-feira.
O novo governante é contrário à demarcação de
terras indígenas, pois afirma que os povos tradicionais têm de “se
integrar” ao resto da sociedade. Também defende a existência de atividades
remuneradas nas áreas habitadas pelas comunidades isoladas. “O índio não pode
continuar dentro de uma área demarcada como se fosse um animal fechado em um
zoológico”, disse Bolsonaro em declarações que lembravam a linha mantida
durante a ditadura militar (1964-1985).
Na época, a política era de aproximação desses
povos para tentar inseri-los na sociedade, especialmente se estivessem em uma
área de interesse para projetos de infraestrutura. Foi desastroso para a saúde
desses povos, que não estavam protegidos nem vacinados para enfrentar algumas
das doenças que circulavam fora da selva. Desde 1988, quando se promulgou a
nova Constituição, após o fim da ditadura, o Governo do Brasil mudou a forma de
se relacionar com esses povos e passou a atendê-los apenas quando pediam
ajuda.
Brasil, ao lado de Peru e Colômbia, são atualmente
os países com maior experiência na proteção desses povos, opina Silvana
Valdobino, advogada e diretora do Programa de Biodiversidade e Povos Indígenas
da Sociedade Peruana de Direito Ambiental (SPDA).
O Peru, na verdade, conta com uma lei para povos
indígenas não contatados e em fase de contato inicial. Ou seja, aqueles que
tiveram já alguma aproximação e buscam maior encontro com outras comunidades.
Mas o marco regulatório se tornou restrito, opina a jurista. “A norma diz que
se há uma reserva para esses povos e se for identificado um recurso, como uma
jazida de ouro, é possível explorar. E isso significaria a provável extinção
desse povo”, adverte.
Para além da lei, é enorme o trabalho que se fez já
para a proteção desses povos e muito mais o que resta a fazer, reflete o
indígena da tribo shipibo-conibo (Peru) Julio Cusurichi, vencedor do Prêmio
Ambiental Goldman e presidente da Federação Nativa do Rio Madre de Dios e
Afluentes (Fenamad).
No país andino existem cinco reservas para cerca de
7.000 indígenas, segundo o Ministério da Cultura. Encontram isolamento ou
contato inicial. Há cinco propostas para criar novas áreas protegidas. “A
principal ameaça [para os indígenas] vem do Governo”, denuncia Cusurichi. “O
Ministério do Transporte quer aprovar vários projetos de lei para construir
estradas que atravessem parques nacionais. É uma grande ameaça e vem dos
congressistas.” “Foi muito importante que organizações e ministérios [Meio
Ambiente e Cultura] denunciassem o que pode acontecer se fizerem algo assim: é
um etnocídio”, concorda Valdobino.
Densidade populacional
População indígena na Amazônia. Foto: Eraldo Peres/AP |
Uma das reservas com maior densidade populacional
está em Madre de Dios, a região peruana onde atua a organização Fenamad.
“Construímos postos de vigilância adjacentes ao território dos povos indígenas
em Monte Salvado, por exemplo, e em El Diamante, e contratamos outros indígenas
que falam a mesma língua que os não contatados”, conta Cusurichi. “Assim como
há guardas florestais que guardam árvores e pássaros, eles monitoram esses
indígenas em isolamento para que estranhos não entrem nesses territórios”,
explica. “Andam pela mata buscando marcas e sinais como restos de fogueira ou
casas abandonadas. Também falam com os vizinhos já contatados que muitas vezes
dizem: ‘ah, vivemos muito longe de nossos irmãos não contatados’”, acrescenta
Fiona Watson.
Daí a importância do monitoramento: para tentar
reduzir os riscos de contato de pessoas que querem evangelizar ou pretendem
rodar um documentário. E, sem dúvida, daqueles que tentam realizar atividades
ilegais como o corte de madeira ou extração de ouro em regiões que, exatamente
por terem tão pouca intervenção, são muito ricas em recursos naturais cobiçados
por empresas extratoras, ilustra a advogada.
Não se trata de entrar em contato com eles, insiste
Valdobino, mas de realizar um trabalho dissuasório para quem tentar. “Os
profissionais do Ministério da Cultura [no Peru] têm protocolos de ação sobre o
que fazer quando, por exemplo, veem [os indígenas] saírem da
reserva por alguma razão excepcional.”
Graças a seu conhecimento da linguagem, conseguiram
escutá-los e identificar certas ações que marcam uma vontade do que querem
fazer. “Em duas ocasiões avistaram indígenas, que se aproximaram com flechas
apontando para cima, em atitude desafiadora. Isso significa que não tinham
vontade de socializar, então o que esses profissionais devem fazer é sair do
posto de controle”, descreve a advogada. Fiona Watson explica um caso ocorrido
no Peru: “Sabe-se de um povo indígena não contatado que deixou flechas cruzadas
nas trilhas; é um sinal muito claro de que não querem que ninguém entre”,
afirma.
A delicada saúde dos não contatados
O contato dos sapanahua ocorreu em uma terra
indígena do povo ashaninka no estado brasileiro do Acre. Depois daquela
aparição, quase 30 indivíduos decidiram abandonar o isolamento. E todos
sentiram o efeito do primeiro contato: pegaram gripe, uma doença para a qual
carecem de imunidade. Diante dos olhos do mundo, devido aos vídeos que
circularam na internet, receberam assistência médica e acabaram
curando-se, algo que nem sempre ocorre. Os casos de contato costumam ser
desastrosos quando não há ajuda médica: uma doença não tratada pode exterminar
entre 50% e 90% de um grupo, afirma a Funai. Quando decidem deixar o
isolamento, demoram até três gerações para adquirir a imunidade necessária para
combater a gripe, a hepatite ou o sarampo, doenças comuns na região.
Na região em que vivem se sabe de outros isolados que estão se
aproximando de aldeias, durante a noite, e levam objetos como facões, panelas e
roupas, que podem estar contaminados e representam riscos para a saúde, sem que
recebam a atenção necessária. Segundo a Survival e corroborado pela própria
Funai, os casos de indígenas isolados dizimados no território brasileiro são
frequentes. Há algumas etnias isoladas que sobrevivem com um número baixíssimo
de membros, como o “homem do buraco”, um solitário indígena que vive na região
de Tanaru, no norte do país, e rejeita qualquer tipo de contato.
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