“Hoje, Glenn, amanhã, você: em um Estado autoritário, ninguém
está a salvo...”
Por Leonardo Sakamoto*
Em tempo: O clima de ódio político é apenas o capítulo
recente de um país cuja fundação foi feita em cima do sangue de negros,
indígenas e pobres. Estes são sistematicamente acusados injustamente,
simplesmente por serem negros, indígenas e pobres.CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, Brasília, 5 de outubro de 1988: "Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. § 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. (...) É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença [Art. 5º, Inciso IX]".
Você não precisa gostar do jornalista Glenn Greenwald ou de seu trabalho à frente do site The Intercept Brasil, responsável por revelar mensagens entre o então juiz federal Sergio Moro e procuradores da força-tarefa da Lava Jato.
Mas se tem algum apreço pela democracia deve
repudiar a denúncia contra ele pelo procurador da República Wellington Divino
Marques de Oliveira.
Glenn foi acusado, nesta terça (22), de auxiliar,
incentivar e orientar a invasão de smartphones de autoridades. No curso da
investigação, a própria Polícia Federal não viu crime, mas jornalismo em suas
conversas com hackers que foram sua fonte de informação. A investigação apontou
que as mensagens de Telegram divulgadas por ele não foram uma encomenda. Mesmo
assim, foi denunciado.
Vivemos um contexto de ultrapolarização política.
Nele, desumaniza-se quem defende
posicionamentos diferentes dos nossos, não reconhecendo que essas pessoas
tenham os mesmos direitos constitucionais. Pelo contrário, defende-se
que sejam caladas e punidas por pensarem
diferente. À força, se necessário. Passando por cima das leis, se preciso.
Após a execução da vereadora Marielle Franco,
muitos foram os idiotas que celebraram ou minimizaram o horror de sua morte. O
ataque a tiros aos ônibus da caravana que o ex-presidente Lula realizou na
região Sul seria rechaçado por todos em qualquer democracia decente - o que não
foi o caso por aqui, dada a quantidade de comemorações. A abominável facada
sofrida por Bolsonaro foi lamentada por pessoas estúpidas que queriam que
Adélio Bispo tivesse terminado o serviço. O músico Moa do Catendê, eleitor de
Fernando Haddad, foi morto a faca por um eleitor de Bolsonaro, em Salvador,
para júbilo de mentecaptos. Rodrigo Janot, ex-procurador-geral da República,
diz que foi armado ao Supremo Tribunal Federal para matar o ministro Gilmar
Mendes e ignorantes o chamaram de herói. É nesse caldo que Glenn Greenwald foi denunciado
criminalmente por fazer jornalismo e matilhas ensandecidas pediram sua prisão.
Da mesma forma que parte das redes sociais já
condenou Glenn Greenwald, munida por uma denúncia tão frágil que não resiste a
uma lufada de Constituição do Supremo Tribunal Federal, ela diariamente acusa
jornalistas com base no ódio. Tanto o provocado por seus líderes, quanto
aqueles que surgem da percepção de que tudo aquilo fora da câmara de eco
precisa ser eliminada.
Como já disse aqui quando hordas se reuniram para
pedir, no Twitter, a deportação de Glenn Greenwald frente às primeiras matérias
do Intercept, uma parcela da sociedade não entende ataques a jornalistas como
uma porrada na liberdade de expressão, um pilar da democracia. Vê isso como uma
manifestação banal do descontentamento. Cede aos discursos fáceis e toscos de
analistas, apaixona-se pela violência de seus líderes.
Algumas lideranças, aliás, sabem o tamanho de sua
caixa de ressonância, o fanatismo de alguns de seus seguidores, que agem como
torcida organizada, e o gigantismo de redes simpáticas a elas ou por elas
controladas. Ao ter consciência disso e não agir para evitar ataques, tornam-se
cúmplices das consequências de seus atos. Isso inclui não apenas membros dos
Poderes Executivo e Legislativo, mas também do Judiciário e do MP.
O Ministério Público Federal é inquestionavelmente
fundamental para a democracia brasileira. Por isso, não deixa de ser amargo
vermos um membro da instituição perseguindo a liberdade de imprensa em nome do
que parece ser puro corporativismo.
Repito a pergunta que ja fiz neste espaço: cabe à
sociedade decidir se quer uma imprensa livre, mesmo que discorde dela, e sair
em sua defesa. Ou se está satisfeita com a proposta colocada à mesa nas
eleições de 2018: substituir a pluralidade e o contraditório por mensagens
hiperpartidarizadas postadas em grupos de WhatsApp que confirmam uma limitada visão de mundo.
O Brasil já é um dos países mais violentos para
jornalistas e comunicadores, com pessoas assassinadas no exercício da
profissão. A denúncia de terça reforça a percepção, aqui e no exterior, de que
o país caminha impávido na direção oposta à democracia.
Hoje é com Glenn, amanhã pode ser com qualquer um.
Afinal, em um Estado autoritário, ninguém está a salvo.
Em tempo: O clima de ódio político é apenas o
capítulo recente de um país cuja fundação foi feita em cima do sangue de
negros, indígenas e pobres. Estes são sistematicamente acusados injustamente,
simplesmente por serem negros, indígenas e pobres.
*Leonardo Sakamoto: é jornalista e doutor em
Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em
diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados
brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do
Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor
de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil,
conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão
e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro
contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de
"Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi
Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.
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