Por Reginauro Silva
Ontem, encontrei-me com meu cadáver. Sério. Lívido.
Compenetrado. Excessivamente gelado. Digo isto porque nada me impressiona mais
no meu cadáver do que sua extrema frieza. Nem mesmo a rigidez...
Encontrei meu cadáver num corredor público. Quer
dizer, um encontro mórbido num cenário idem. Como sempre, meu cadáver chegou
assim sem cerimônias, estendeu a mão e ficou lá, cara de paisagem, esperando
que eu o imitasse. Vagarosamente, disse-lhe oi, fitei seus olhos de imagem e
ofereci-lhe as pontas dos dedos. Tudo sem pressa, no compasso da lerdeza
circundante.
Vultos passavam ao largo e não davam conta de nossa
presença naquele corredor burocrático. A sensação invisível é de que não
acrescentávamos nada à pasmaceira ambiental, assim como aqueles fantasmas
também nada agregavam à nossa insensatez. Éramos dois insossos flutuando num
mar de isopores. Eu e meu cadáver.
Projetava-se no horizonte o fim das vontades;
O fim das querências;
O fim das liberdades;
O fim das carências.
Lia-se no semblante sem alma do meu cadáver a falta
de ação;
A falta de atenção;
A falta de tesão;
O excesso de ilusão.
Entre mim e meu cadáver imperava o amor que se foi;
A paixão que passou;
O beijo que marcou;
O gozo que miou...
Sorvíamos, eu e meu cadáver, o gosto amargo do fel;
O torpor da anestesia ambivalente;
O silêncio da madrugada indormida;
O murmúrio do jazigo revisitado.
Algumas lições tiradas do encontro entre mim e meu
cadáver:
Não se pode tentar o imponderável;
Não se enxuga gelo com toalha;
Não se derrete barriga de sorvete;
Não se constrói sobre pilares de nada.
Pensava tudo isso enquanto meu cadáver fitava o
horizonte como se contemplasse a desconstrução da constituição. Como se
descomesse a epiderme espiralada do castelo ambíguo da depressão acasalada.
Por mais que assim sugerisse, eu não conseguia de
toda forma embalar-me pela suavidade disforme daquele cadáver prostrado naquela
esquina administrativa, como se nem cadáver fosse. Como se fosse uma coisa.
Recusava-me, assim, a destruir minhas partes como se imerso numa repentina
serpentina de células e neurônios congelados em massa de ectoplasmas.
Meu cadáver, va-ga-ro-sa-men-te, começou a adentrar
o mundo depressivo da aridez endêmica em que se transformara, mas eu relutava
em seguir-lhe os passos, por mais convincentes que fossem seus desargumentos.
Num quase inaudível sussurrar, soletrou então meu cadáver que estava indo
embora.
E se despediu sem maiores cerimônias.
*Fonte: A Província/Crônicas
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