Curso
sobre o golpe de 2016, um balanço
Por
Luis Felipe Miguel*
Vista aérea da Universidade de Brasília (UnB). Foto: http://www.folhadacomunidadedf.com.br/ |
Chega ao final o semestre letivo da UnB e, com ele, o “famoso” curso
sobre o golpe de 2016. Hora de fazer um balanço da experiência.
Aqui na UnB, depois das ameaças iniciais do então ocupante do MEC e da
tensão gerada pela agitação da extrema-direita, a disciplina ocorreu sem
sobressaltos. Na verdade, foi muito tranquila. Os estudantes bolsonarianos que
haviam se matriculado nela nem sequer apareceram – creio que desistiram quando
perceberam que não ia ter tumulto, mas debate e reflexão. Ainda assim, o começo
do semestre foi marcante. Nunca imaginei que, em minha vida de professor, teria
que dar aula sob esquema de segurança e temor de pancadaria. Creio que este é
um dos efeitos mais lamentáveis da campanha fascista do “Escola Sem Partido”:
transformar as salas de aula em espaço de hostilidade, em vez de construção
conjunta de conhecimento e de discussão franca.
Mendonça Filho recuou de seus propósitos persecutórios, em parte pela
péssima repercussão de sua desastrada iniciativa, em parte porque já havia
feito a mise-en-scène para sua base radicalizada. Até onde sei, a UnB só
recebeu um pedido de esclarecimento pro forma, do TCU, que foi acionado por um
deputado retrógrado. “Até onde sei” porque a minha instituição assumiu toda a
responsabilidade pela defesa jurídica da disciplina. Quero agradecer, uma vez mais,
à reitora Márcia
Abrahão e a seu vice, Enrique
Huelva, pelo compromisso firme com a autonomia universitária.
Em outras universidades, porém, a situação foi mais tensa. Onde o
Ministério Público está instrumentalizado pela extrema-direita e onde juízes
ativistas altamente ideologizados atuam, houve tentativas sérias de censura e
de bizarra interferência na universidade. O caso mais lamentável vem da
Universidade Federal de São Carlos, em que a própria reitoria, controlada por
um grupo reacionário, sustou a oferta de um curso sobre o golpe. Uma reitoria
agindo contra a autonomia universitária – é de lascar.
A proliferação de cursos sobre o golpe indicou uma magnífica determinação
da universidade brasileira para lutar pela preservação da sua autonomia, que é
a condição básica para que possamos fazer bem nosso trabalho como docentes e
pesquisadores e para que possamos devolver à sociedade, em forma de
conhecimento e diálogo, aquilo que ela nos dá. Foi também, como tenho repetido,
uma tocante demonstração de solidariedade que recebi de centenas de colegas,
muitos dos quais sequer me conheciam, que se levantaram para dividir comigo o
ônus das pressões e das perseguições. A todos, meu agradecimento mais sincero.
Graças a generosos convites, pude estar presente em vários dos cursos – e
muitos outros convites eu infelizmente não pude aceitar. Somando a outros
compromissos, do início de março para cá estive fora de Brasília por alguns
dias em praticamente todas as semanas. Embora tenha sido sempre bem acolhido,
encontrado pessoas queridas em cada cidade e participado de discussões
proveitosas, confirmei que esta vida de globe-trotter não é para mim e jurei
que, daqui para a frente, esse ritmo será diminuído.
O movimento dos cursos sobre o golpe é, a meu ver, amplamente positivo.
Está contribuindo para sacudir a letargia da universidade brasileira. O saldo
pessoal, para mim, da notoriedade indesejada que recebi, é mais ambíguo.
Confesso que me diverti mais do que me zanguei com as absurdidades que, durante
um punhado de dias, os jornalistas da direita despejaram sobre mim, sobre o
curso, sobre a universidade. Meu favorito pessoal é o mentor do “Escola Sem
Partido” dizendo que a disciplina sobre o golpe não era uma disciplina de
Ciência Política porque não tinha nem Platão, nem Aristóteles na bibliografia.
A imprensa fez, como de costume, um papelão. Desde o pequeno site local
que deflagrou o "escândalo" de um curso sobre o golpe "em uma
universidade paga pelo governo" (sic) até os jornalões, que reforçaram a
tese de que a educação tem que ser "neutra" e de que não se pode
falar do golpe - e deram espaço nenhum para o contraditório. Por exemplo,
quando os colegas da Unicamp escreveram para a Folha uma resposta a um texto
feroz contra a universidade e o pensamento crítico, tiveram dificuldade até
para arrancar a informação de que o jornal não iria publicá-lo.
Dentro da academia, foram pouquíssimos os que defenderam a censura ao
curso. A posição mais comum, à direita, foi tentar desqualificar o programa e o
professor, “anticientíficos” e “doutrinadores”, lamentar a presença de tais
excrescências, mas reconhecer que, uma vez que eles existem, o direito de
oferecer a matéria precisa ser garantido. Em alguns casos, colegas
conservadores manifestaram suas divergências de forma ponderada, e suas defesas
da liberdade de cátedra foram particularmente importantes. Das manifestações
desonestas de colegas de direita, só uma me incomodou pessoalmente, vinda de um
ex-comunista convertido ao fernandismo radical, que eu julgava que, apesar de
seu reacionarismo galopante, ainda podia merecer respeito.
O pior, no entanto, é o movimento mais sutil de emparedar, a mim e a
outros colegas mais intensamente envolvidos nos cursos pelo país afora, na
posição de “militantes”, logo, desprovidos de respeitabilidade acadêmica.
Trata-se de novo round do embate permanente contra a noção positivista de
“neutralidade” nas ciências sociais. É uma manobra conveniente porque, ao nos
desqualificar como interlocutores, permite que fujam do debate conosco. Mas a
ciência que eu procuro fazer e que vi nos cursos sobre o golpe pelo Brasil
afora não tem nada de "militante" (no sentido de movida por paixão
partidária cega). Ela é, isto sim, engajada: assume sem rodeios seus valores
ético-políticos, não nega que faz parte do mundo social que procura desvendar,
recusa a ficção da neutralidade e, em seu lugar, coloca a honestidade de assumir
o lugar de onde fala. É um engajamento que se combina com o rigor científico e
do qual tem saído a maior e a melhor parte do conhecimento produzido nas
ciências sociais.
O emparedamento almejado prejudica nossas posições no campo acadêmico e
visa comprometer a continuidade de nosso próprio trabalho. Lembro que, nos
corredores do último encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, que
ocorreu no momento em que o Senado aprovava o afastamento definitivo da
presidente Dilma Rousseff, um “colega” particularmente desqualificado dizia o
seguinte: “Esses aí que estão falando em ‘golpe’ vão mudar de discurso assim
que seus financiamentos de pesquisa começarem a ser cortados”.
Parece que não há muito com o que nos ameaçar. Os financiamentos de
pesquisa foram cortados em geral, pelas políticas de desmonte do investimento
público pelo governo golpista, sem discriminar ninguém.
E, assim como sabemos que nenhum cientista social produziu conhecimento
digno de nota aderindo ao golpe de 1964, hoje todos os pesquisadores mais
respeitáveis se alinham ao entendimento de que em 2016 ocorreu uma ruptura
ilegal da ordem constitucional – ainda que aplicando ênfases diferenciadas. Uma
vez mais, a proliferação das disciplinas sobre o golpe, que reuniram, como já
disse antes, um verdadeiro dream team das ciências humanas no Brasil, foi
essencial para marcar esta situação.
*Luis
Felipe Miguel é Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, Professor do Instituto
de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de
Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades. Pesquisador do CNPq. Autor de
diversos livros, entre elesDemocracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Feminismo e
política: uma introdução (com Flávia
Biroli; Boitempo, 2014), Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018).
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