FN Café NEWS - quarta-feira, 25 de dezembro de 2013
A poesia de Drummond
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Hino nacional -
Carlos Drummond de Andrade
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Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas, com a água dos rios no meio, o Brasil está dormindo, coitado. Precisamos colonizar o Brasil.
O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia, alemãs gordas, russas nostálgicas para garçonnettes dos restaurantes noturnos. E virão sírias fidelíssimas. Não convém desprezar as japonesas.
Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros, assimilaremos finas culturas, abriremos dancings e subvencionaremos as elites.
Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina, salão para conferências científicas. E cuidaremos do Estado Técnico.
Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual. Nossas revoluções são bem maiores do que quaisquer outras; nossos erros também. E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões… os Amazonas inenarráveis… os incríveis João-Pessoas… |
Precisamos adorar o Brasil.
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão no pobre coração já cheio de compromissos… se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado, ele quer repousar de nossos terríveis carinhos. O Brasil não nos quer! Está farto de nós! Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros? |
Monólogo das Grandezas do Brasil
Belchior
Todo mundo
sabe/todo mundo vê
Que tenho sido amigo da ralé da minha rua
Que bebe pra esquecer que a gente
É fraca
É pobre
É víl
Que tenho sido amigo da ralé da minha rua
Que bebe pra esquecer que a gente
É fraca
É pobre
É víl
Que dorme
sob as luzes da avenida
É humilhada e ofendida pelas grandezas do brasil
Que joga uma miséria na esportiva
Só pensando em voltar viva
Pro sertão de onde saiu
Todo mundo sabe
(principalmente o bom deus, que tudo vê)
Que os homens vão dizer que a vida é dura e incompleta
Pra quem não fez a guerra e não quer vestibular
Pra quem tem a carteira de terceira
Pra quem não fez o serviço militar
Pra quem amassa o pão da poesia
Na limpeza e na alegria
Contra o lixo nuclear.
Como uma metrópole,
O meu coração não pode parar
Mas também não pode sangra eternamente
Ta faltando emprego
Neste meu lugar
Eu não tenho sossego
Eu quero trabalhar
Já pensei até em passar a fronteira.
- eu vou pra são paulo e rio
(eldorados da além - mar)
A estrada é uma estrela pra quem vai andar.
Oh! não! oh! não!
Ai! ai! que bom que é
A lua branca, um cristão andando a pé!
Ai! ai! que bom, que bom se eu for
Pés no riacho, água fresca, nosso senhor!
Vou voltar pro norte/ semana que vem
Deus já me deu sorte/ mas tem um porem
Não me deu a grana/ pra eu pagar o trem. Todo mundo sabe/todo mundo vê
Que tenho sido amigo da ralé da minha rua
Que bebe pra esquecer que a gente
É fraca
É pobre
É víl
Que dorme sob as luzes da avenida
É humilhada e ofendida pelas grandezas do brasil
Que joga uma miséria na esportiva
Só pensando em voltar viva
Pro sertão de onde saiu
Todo mundo sabe
(principalmente o bom deus, que tudo vê)
Que os homens vão dizer que a vida é dura e incompleta
Pra quem não fez a guerra e não quer vestibular
Pra quem tem a carteira de terceira
Pra quem não fez o serviço militar
Pra quem amassa o pão da poesia
Na limpeza e na alegria
Contra o lixo nuclear.
Como uma metrópole,
O meu coração não pode parar
Mas também não pode sangra eternamente
Ta faltando emprego
Neste meu lugar
Eu não tenho sossego
Eu quero trabalhar
Já pensei até em passar a fronteira.
- eu vou pra são paulo e rio
(eldorados da além - mar)
A estrada é uma estrela pra quem vai andar.
Oh! não! oh! não!
Ai! ai! que bom que é
A lua branca, um cristão andando a pé!
Ai! ai! que bom, que bom se eu for
Pés no riacho, água fresca, nosso senhor!
Vou voltar pro norte/ semana que vem
Deus já me deu sorte/ mas tem um porem
Não me deu a grana/ pra eu pagar o trem.
É humilhada e ofendida pelas grandezas do brasil
Que joga uma miséria na esportiva
Só pensando em voltar viva
Pro sertão de onde saiu
Todo mundo sabe
(principalmente o bom deus, que tudo vê)
Que os homens vão dizer que a vida é dura e incompleta
Pra quem não fez a guerra e não quer vestibular
Pra quem tem a carteira de terceira
Pra quem não fez o serviço militar
Pra quem amassa o pão da poesia
Na limpeza e na alegria
Contra o lixo nuclear.
Como uma metrópole,
O meu coração não pode parar
Mas também não pode sangra eternamente
Ta faltando emprego
Neste meu lugar
Eu não tenho sossego
Eu quero trabalhar
Já pensei até em passar a fronteira.
- eu vou pra são paulo e rio
(eldorados da além - mar)
A estrada é uma estrela pra quem vai andar.
Oh! não! oh! não!
Ai! ai! que bom que é
A lua branca, um cristão andando a pé!
Ai! ai! que bom, que bom se eu for
Pés no riacho, água fresca, nosso senhor!
Vou voltar pro norte/ semana que vem
Deus já me deu sorte/ mas tem um porem
Não me deu a grana/ pra eu pagar o trem. Todo mundo sabe/todo mundo vê
Que tenho sido amigo da ralé da minha rua
Que bebe pra esquecer que a gente
É fraca
É pobre
É víl
Que dorme sob as luzes da avenida
É humilhada e ofendida pelas grandezas do brasil
Que joga uma miséria na esportiva
Só pensando em voltar viva
Pro sertão de onde saiu
Todo mundo sabe
(principalmente o bom deus, que tudo vê)
Que os homens vão dizer que a vida é dura e incompleta
Pra quem não fez a guerra e não quer vestibular
Pra quem tem a carteira de terceira
Pra quem não fez o serviço militar
Pra quem amassa o pão da poesia
Na limpeza e na alegria
Contra o lixo nuclear.
Como uma metrópole,
O meu coração não pode parar
Mas também não pode sangra eternamente
Ta faltando emprego
Neste meu lugar
Eu não tenho sossego
Eu quero trabalhar
Já pensei até em passar a fronteira.
- eu vou pra são paulo e rio
(eldorados da além - mar)
A estrada é uma estrela pra quem vai andar.
Oh! não! oh! não!
Ai! ai! que bom que é
A lua branca, um cristão andando a pé!
Ai! ai! que bom, que bom se eu for
Pés no riacho, água fresca, nosso senhor!
Vou voltar pro norte/ semana que vem
Deus já me deu sorte/ mas tem um porem
Não me deu a grana/ pra eu pagar o trem.
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POEMA
O poema de hoje é esta manhã
que se estende
para o mundo, infectada de coisas
lembradas e esquecidas.
Esta manhã que se perde na poeira oblíqua
do tempo onde os homens depositam
os seus sonhos improváveis e tristes.
Manhã onde a
vida é diluída na paisagem
do pensamento.
Assim, só nos resta acolher a verdade
dos campos e nos abandonarmos
nesta hora diminuta.
Só nos resta avistar no longínquo das nuvens
os habitantes da fuga
e os pássaros sem religião.
Wagner Rocha
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Se houver uma Camisa Preta e Branca...
Roberto Drummond
Bandeira do Clube Atlético Mineiro (CAM): o Galo forte, carijó das Minas Gerais |
Se houver uma camisa preta e branca
pendurada no varal durante uma tempestade, o atleticano torce contra o vento.
Ah, o que é ser atleticano? É uma doença? Doidivana paixão? Uma religião pagã?
Bênção dos céus? É a sorte grande? O primeiro e único mandamento do atleticano
é ser fiel e amar o Galo sobre todas as coisas. Daí, que a bandeira atleticana
cheira a tudo neste mundo.
Cheira ao suor da mulher amada.
Cheira a lágrimas.
Cheira a grito de gol
Cheira a dor.
Cheira a festa e a alegria.
Cheira até mesmo perfume francês.
Só não cheira a naftalina, pois nunca
conhece o fundo do baú, trêmula ao vento.
A gente muda de tudo na vida. Muda de
cidade. Muda de roupa. Muda de partido político. Muda de religião. Muda de
costumes. Até de amor a gente muda. A gente só não muda de time, quando ele é
uma tatuagem com a iniciais C.A.M., gravada no coração. É um amor cego e têm a
cegueira da paixão.
Já vi o atleticano agir diante do clube
amado com o desespero e a fúria dos apaixonados. Já vi atleticano rasgar a
carteira de sócio do clube e jurar: Nunca mais torço pelo Galo. Já vi
atleticano falar assim, mas, logo em seguida, eu o vi catar os pedaços da
carteira rasgada e colar, como os amantes fazer com o retrato da amada.
Que mistério tem o Atlético que, às
vezes, parece que ele é gente? Que a gente associa às pessoas da família (pai,
mãe, irmão, tio, prima)? Que a gente o confunde com a alegria que vem da mulher
amada?
Que mistério tem o Atlético que a gente
confunde com uma religião?
Que a gente sente vontade de rezar "Ave
Atlético, cheio de graça?"
Que a gente o invoca como só invoca um
santo de fé? Que mistério tem o Atlético que, à simples presença de sua camisa
branca e preta, um milagre se opera?Que tudo se transfigura num mar branco e
preto?
Ser atleticano é um querer bem. É uma
ideologia. Não me perguntem se eu sou de esquerda ou de direita. Acima de tudo,
sou atleticano e, nesse amor, pertenço ao maior partido político que existe:
O Partido do Clube Atlético Mineiro, o
PCAM, onde cabem homens, mulheres, jovens, crianças. Diante do Atlético todos
são iguais: o bancário pode tanto quanto o banqueiro, o operário vale tanto
quanto o industrial. Toda manhã, quando acordo, eu rezo: Obrigado, Senhor, por
me ter dado a sorte de torcer pelo Atlético.
Roberto Drummond
Em 1975, Roberto Drummond
foi considerado o escritor revelação da temporada, com a publicação do romance
"A Morte de D. J. em Paris", recebendo o Prêmio Jabuti.
Numa primeira fase de sua
carreira, participou da chamada literatura pop, caracterizada pela ausência de
cerimônias e pela proximidade com o cotidiano.
Drummond escreveu "O
Dia em que Ernest Hemingway Morreu Crucificado" (romance, 1978),
"Sangue de Coca-Cola" (romance, 1980) e "Quando Fui Morto em
Cuba (contos, 1982).
Com "Hitler Manda
Lembranças" (romance, 1984) e "Ontem à Noite Era Sexta-feira"
(romance, 1988) iniciou uma nova fase em sua produção literatura, com enredos
mais complexos.
Em 1991, lançou seu maior
sucesso, o romance "Hilda Furacão", que foi adaptado para a televisão
por Glória Perez, numa minissérie. Pare ele, o fato de o livro ter se tornado
sua obra-prima resultou numa espécie de prisão. "Sou um eterno refém de
'Hilda Furacão'", dizia o escritor.
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Forever Young
Bob Dylan
Original/Inglês
|
Tradução/Português
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May God bless and keep
you always,
May your wishes all come true, May you always do for others And let others do for you. May you build a ladder to the stars And climb on every rung, May you stay forever young, Forever young, forever young, May you stay forever young. May you grow up to be righteous, May you grow up to be true, May you always know the truth And see the lights surrounding you. May you always be courageous, Stand upright and be strong, May you stay forever young, Forever young, forever young, May you stay forever young. May your hands always be busy, May your feet always be swift, May you have a strong foundation When the winds of changes shift. May your heart always be joyful, May your song always be sung, May you stay forever young, Forever young, forever young, May you stay forever young. |
Que Deus te abençoe e te acompanhe sempre,
Que seus desejos se tornem realidade, Que você sempre faça para os outros E deixe que os outros façam por você. Que você construa uma escada para as estrelas E suba cada degrau, Que você fique jovem para sempre, Jovem para sempre, jovem para sempre, Que você fique jovem para sempre. Que você cresça para ser justo, Que você cresça para ser verdadeiro, Que você sempre saiba a verdade E veja as luzes ao seu redor. Que você seja sempre corajoso, Fique em pé e seja forte, Que você fique jovem para sempre, Jovem para sempre, jovem para sempre, Que você fique jovem para sempre. Que suas mãos estejam sempre ocupadas Que seus pés sejam sempre rápidos Que você tenha uma base forte Quando os ventos das mudanças voltarem. Que o seu coração seja sempre feliz, Que sua canção seja sempre cantada, Que você fique jovem para sempre, Jovem para sempre, jovem para sempre, Que você fique jovem para sempre. |
Autor: B. Dylan
Álbum: The Best Of Bob
Dylan
Estilo: Rock
Gravadora: SONY
Selo: COLUMBIA/LEGACY
Ano: 2005
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Humano Hum
Antônio
Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, simplesmente: Belchior
Lavrar a palavra a pá,
Como quem prepara um pão.
Quando o mar virar sertão,
Nossa palavra será
Tão humana como o pão.
E o canto que soar um palavrão
Se mostrará como é:
Anjo de espada na mão.
Os Ombros Suportam o Mundo*
Carlos Drummond de
Andrade
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
*Os versos foram publicados no livro "Antologia Poética" (Organiza por Drummond)/
Carlos Drummond de Andrade - Rio de Janeiro: Record, 2010, pág. 182.
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Tecendo a Manhã
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
João Cabral de Melo Neto
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“Há um tempo
em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo,
e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o
tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à
margem de nós mesmos”.
Fernando
Teixeira de Andrade
Mãos dadas
“Não serei
o poeta de um mundo caduco.
Também não
cantarei o mundo futuro
Estou
preso à vida e olho meus companheiros.
Estão
taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre
eles, considero a enorme realidade.
O presente
é tão grande, não nos afastemos.
Não nos
afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei
o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi
os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não
distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não
fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é
a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida
presente”.
Carlos
Drummond de Andrade
“O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta
e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois
desinquieta.
O que ela quer da gente
é coragem”.
João Guimarães Rosa
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Por Reginauro Silva**
Ontem, encontrei-me com meu cadáver. Sério. Lívido.
Compenetrado. Excessivamente gelado. Digo isto porque nada me impressiona mais
no meu cadáver do que sua extrema frieza. Nem mesmo a rigidez...
Encontrei meu cadáver num corredor público. Quer
dizer, um encontro mórbido num cenário idem. Como sempre, meu cadáver chegou
assim sem cerimônias, estendeu a mão e ficou lá, cara de paisagem, esperando
que eu o imitasse. Vagarosamente, disse-lhe oi, fitei seus olhos de imagem e
ofereci-lhe as pontas dos dedos. Tudo sem pressa, no compasso da lerdeza
circundante.
Vultos passavam ao largo e não davam conta de nossa
presença naquele corredor burocrático. A sensação invisível é de que não
acrescentávamos nada à pasmaceira ambiental, assim como aqueles fantasmas
também nada agregavam à nossa insensatez. Éramos dois insossos flutuando num
mar de isopores. Eu e meu cadáver.
Projetava-se no horizonte o fim das vontades;
O fim das querências;
O fim das liberdades;
O fim das carências.
Lia-se no semblante sem alma do meu cadáver a falta
de ação;
A falta de atenção;
A falta de tesão;
O excesso de ilusão.
Entre mim e meu cadáver imperava o amor que se foi;
A paixão que passou;
O beijo que marcou;
O gozo que miou...
Sorvíamos, eu e meu cadáver, o gosto amargo do fel;
O torpor da anestesia ambivalente;
O silêncio da madrugada indormida;
O murmúrio do jazigo revisitado.
Algumas lições tiradas do encontro entre mim e meu
cadáver:
Não se pode tentar o imponderável;
Não se enxuga gelo com toalha;
Não se derrete barriga de sorvete;
Não se constrói sobre pilares de nada.
Pensava tudo isso enquanto meu cadáver fitava o
horizonte como se contemplasse a desconstrução da constituição. Como se
descomesse a epiderme espiralada do castelo ambíguo da depressão acasalada.
Por mais que assim sugerisse, eu não conseguia de
toda forma embalar-me pela suavidade disforme daquele cadáver prostrado naquela
esquina administrativa, como se nem cadáver fosse. Como se fosse uma coisa.
Recusava-me, assim, a destruir minhas partes como se imerso numa repentina
serpentina de células e neurônios congelados em massa de ectoplasmas.
Meu cadáver, va-ga-ro-sa-men-te, começou a adentrar
o mundo depressivo da aridez endêmica em que se transformara, mas eu relutava
em seguir-lhe os passos, por mais convincentes que fossem seus desargumentos.
Num quase inaudível sussurrar, soletrou então meu cadáver que estava indo
embora.
E se despediu sem maiores cerimônias.
*Fonte:
A Província/Crônicas
**O jornalista Reginauro Silva (62 anos)
escreveu esta crônica numa espécie de tom profético antes mesmo de sua morte, que
ocorreu no dia 21/5/2012 (2ª feira). Ele atuou como repórter do Jornal de
Montes Claros e do Diário de Montes Claros, além de repórter e editor-chefe do
Jornal do Norte; redator da Rádio Educadora de Montes Claros, repórter do
Diário de Minas, editor-adjunto de polícia do Jornal Hoje em Dia. Ele foi
correspondente do jornal O Globo (RJ) e colaborador da Revista Veja, Gazeta
Mercantil, Revista IstoÉ. Editou o Jornal O Norte de Minas e foi fundador do
Jornal do Povo, em Montes Claros.
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Wagner Rocha*
A Caverna. Fonte: National Geographic 2007 |
O que se evidencia no romance A caverna,
do escritor português José Saramago, a exemplo de tantas outras obras
de sua autoria, é a prática de uma literatura que não se intimida ao
esmiuçar os dramas humanos, mas ao contrário, procura convertê-los ao
máximo em possibilidade de reflexão. Trata-se de um livro que nos dá
diversas chaves de leitura em que tudo o que nele se alude requer de nós
o exercício de uma consciência crítica. A trajetória literária do seu
autor permite-nos apontar que o conjunto dos seus escritos é permeado
por um projeto humanista bastante fecundo, onde a palavra atua como um
instrumento de expressão e de tradução das vicissitudes do mundo real.
Em A caverna encontramos uma metáfora, uma forma de dizer e de
figurar o domínio do poder econômico, a hegemonia tecnológica e a
produção em série frente o trabalho manual produzido pelo ofício do
oleiro.
No
texto de apresentação (orelha) que acompanha a edição da obra publicada
pela Companhia das Letras, Benedito Nunes nos adverte que “a anulação
do trabalho manual ou artesanal pela tecnologia, tal poderia ser o
resumo desse aspecto destrutivo do capitalismo em seu acme, convertido
pelo romance numa parábola social”. Diante do exposto, convém salientar
que essa “parábola social” encontra, de certa forma, a sua inspiração no
conhecido “mito” ou “alegoria” da Caverna descrito por Platão no Livro
VII, 514a – 517b, da República. Tal questão pode ser verificada logo na epígrafe do romance em que Saramago
transcreve o seguinte trecho extraído do filósofo: “Que estranha cena
descreves e que estranhos prisioneiros, São iguais a nós”. Talvez o mito
da caverna seja o escrito de Platão que mais se tornou conhecido e
difundido nas diversas áreas do saber, desde a filosofia aos campos da
política, da literatura, da arte e da pedagogia.
O Mito da Caverna. Fonte: Tiras do Maurício de Souza |
Trata-se
de uma narrativa que coloca em evidência o jogo analógico entre a luz e
a obscuridade, o sol e as sombras, a sabedoria e a ignorância, a
liberdade e o cárcere, a essência e a aparência, o simulacro e a
verdade. De acordo com Henri-Irénée Marrou, “no sétimo livro da República,
o célebre mito da caverna proclama o poder emancipatório do saber, que
delivra a alma da incultura”. No que tange a este aspecto, é importante
mencionar que o mito de Platão alude-se ao fato da necessidade de
ensinar o homem a ser sábio e a não se deixar dominar pelos jogos da
aparência, da falsidade transvertida em realidade.
Para
esse filósofo, o mundo real não é o que vemos, o que percebemos e
captamos através da nossa experiência sensível, sendo que tudo o que
entendemos ser a realidade não passa de simulacros, contornos
imperfeitos desta, ou seja, meras projeções. Neste caso, o homem de
Platão é um iludido, um prisioneiro que, estando no interior da caverna,
não conhece nenhuma outra coisa senão aquilo que ali se apresenta aos
seus olhos e aos seus sentidos. Evidentemente, o
pano-de-fundo desta abordagem realizada poeticamente por Platão – mesmo
que este via nas formas poéticas um entrave para se chegar à verdade –
encontra-se numa questão que parece ser o fio condutor de toda a República:
a dicotomia entre “mundo sensível” e “mundo inteligível”, ou seja, a
categórica distinção entre o que pertence ao universo da razão e,
consequentemente do conhecimento, e o que pertence ao universo de um
pseudo-conhecimento sobre as coisas, algo distante e separado da
inteligência. Para ele - e esta é a grande máxima do mito da caverna –
somente a razão, propulsora da prática filosófica, é capaz de arrancar o
homem do interior da caverna, libertando-o e conduzindo-o para fora
dela, onde reside a luz da verdade.
Saramago,
ao utilizar-se da metáfora da caverna, não quis com isso atualizar o
pensamento de Platão, transpondo-o para a nossa realidade contemporânea.
Não se trata disso. Em sua criação literária esboça-se uma forma de
comunicar e de questionar, colocando em xeque um determinado problema
humano e social que atravessa a nossa época: o homem contemporâneo,
habitante da caverna do consumo, seduzido pelo culto exacerbado das
grandes tecnologias, encontra-se impedido de pensar. Prisioneiro de si
mesmo, vivendo em meio às sombras da sua própria soberba, o homem se
recusa a ver o mundo tal qual ele é, ou seja, a sua real essência.
Os
personagens principais do enredo criado por Saramago, a saber, o oleiro
Cipriano Algor e o guarda Marçal Gacho aparecem como uma espécie de
pretexto a fim de colocar em evidência a situação desse homem
contemporâneo frente ao mundo capitalista em que vive. Os personagens em
questão são homens comuns, homens do povo, pertencentes à camada pobre
da sociedade. São trabalhadores que se vêem diante de um enorme conflito
interior quando se deparam com a rejeição por parte de um grande Centro
econômico das peças de louça fabricadas pelo oleiro, pois as mesmas
eram fontes de sustento das suas famílias. Aqui se observa o impasse
entre dominantes e dominados.
Acontecimentos
como este narrado no referido romance dão-se em decorrência do processo
industrial provocado pela expansão do capitalismo que historicamente
acabou por suplantar o trabalho manual, gerando a chamada “sociedade de
consumo”. Segundo o pensador francês Jean Baudrillard, nesse tipo de
sociedade os homens já não vivem mais entre si, mas sim rodeados de
objetos, seduzidos pelas ofertas dos grandes centros comerciais, dos shoppings centers,
dos hipermercados que lhes prometem a abundância e a exuberância. Nem
sempre é a necessidade que leva o homem a consumir, mas o que o objeto
consumido representa no âmbito das relações humanas. A sociedade de
consumo coloca ao nosso dispor uma ideia de que somos livres para
consumir, porém, ao mesmo tempo, responsabiliza-se por dar mais
visibilidade às desigualdades sociais. Há uma falsa liberdade, sendo
que, conforme nos mostra Saramago, estamos cada vez mais imersos no
interior dessa caverna sem saber o que há, de fato, por trás desse
pseudo-humanismo estabelecido pelo mundo do consumo.
Assim,
verificamos que apesar de ter se inspirado no mito platônico, o
escritor português – um comunista convicto, diga-se de passagem - não se
ocupou em estabelecer a supremacia da racionalidade sobre os dados do
sensível como fizera Platão, mas é justamente o sensível, o embate
cotidiano, a vida empírica, que ganha relevância em sua obra.
* Doutorando em Filosofia pela UFMG; professor e chefe do Departamento de Filosofia da Unimontes
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