Morte
“higiênica” e “escondida” por covid-19 agrava a epidemia silenciosa da dor
Enfermeira atende um paciente internado na UTI do Complexo Hospitalar de Navarra, na Espanha, em 15 de abril. Foto: Jesús Diges / EFE |
El
País, 24 abr 2021 - Raúl Limón: Os
mortos por covid-19 se tornaram um número a mais. Suas cifras, sem
imagens e sem referências biográficas, acompanham diariamente as de
contagiados, hospitalizados, internados em UTIs e vacinados. É o que o
antropólogo Alberto del Campo, da Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha
(sul da Espanha), qualifica como “morte higiênica”, que, entre outras coisas,
“esconde o terror e o sofrimento dos que morreram sozinhos”, segundo ele. Mas
essas mortes têm consequências que vão além dela própria. Dois estudos
diferentes, um da Universidade de Cambridge (Reino Unido) e outro da Estadual
da Pensilvânia (EUA), concordam em calcular que, de cada paciente morto por
covid-19, há um impacto direto sobre nove parentes próximos (avós, pais,
irmãos, cônjuges e filhos), que são parte de uma crise sanitária, social e
econômica mais ampla que a atribuída diretamente ao coronavírus. Segundo a
conclusão do estudo norte-americano, publicado na revista PNAS, “poderiam conduzir indiretamente a uma
maior mortalidade devido a causas não relacionadas com a pandemia: agravamento
de condições crônicas não tratadas, abuso de álcool, autolesão, violência
doméstica e outros fatores”.
Para o antropólogo sevilhano, “a higienização da morte não é uma estratégia inocente, como tampouco é inocente a forma como o poder tenta camuflar a calamidade da pandemia, como se de uma catástrofe natural se tratasse. Se for apresentada como inevitável, então não há responsáveis”.
Del Campo reuniu em seu livro Pensar la pandemia (editora Dykinson, 2021) uma dúzia de trabalhos sobre os efeitos da covid-19 além da saúde e a economia. Em um destes estudos, Alejandro González Jiménez-Peña, especialista em filosofia da morte, acrescenta uma razão antropológica adicional para esta camuflagem da morte: “Antigamente ela era silenciada, era um tabu até ontem, antes da pandemia, e poderíamos continuar dizendo que é um tabu hoje em dia, apesar da pandemia”.
González relata como a “morte
cotidiana”, a anterior à pandemia, havia se tornado uma “morte esquecida,
escondida, distante, como assunto dos outros”. “Antes que a covid-19 irrompesse
nas nossas vidas, ninguém se sentava num bar ao anoitecer e, ao mesmo tempo que
bebia uma cerveja, falava e refletia sobre a morte (…); ninguém contava a uma
criança o que era. E ninguém fazia isso porque era sentida como algo reservado
para o futuro”, escreve.
Nessa sociedade, que o filósofo formado
nas universidades de Sevilha e Málaga qualifica de “encobridora do óbito”,
“irrompe a morte pandêmica, agressiva, esmagadora, que não diz respeito apenas
aos outros, mas também a mim”. Entretanto, acrescenta: “Apesar de ter voltado
às nossas vidas, continuamos a nos empenhar em ocultá-la”.
Mas
essa ocultação, premeditada, segundo Del Campo, e também sociológica, de acordo
com González, mascara uma realidade que precisa ser confrontada. Se, como
conclui o trabalho da Universidade da Pensilvânia, o impacto de cada
falecimento se estende a nove familiares diretos, os mais de três milhões de
mortes atribuídas à covid-19 no mundo até o momento se refletem em outras
27 milhões de vítimas adicionais, que, segundo o estudo, “criam uma nova onda
de desafios para a saúde da população”.
Os estudos
científicos demonstram que, “depois de experimentar a morte de um
relacionamento próximo, os indivíduos correm um risco elevado de sofrer
uma série de fatores de estresse negativos para o curso da vida e uma
saúde piorada”. O trabalho aponta desde repetência escolar, rupturas
sentimentais e perdas de apoio econômico e social até efeitos psicológicos. “As
investigações futuras devem ter o cuidado de incluir o luto familiar como um
possível antecedente de resultados adversos em múltiplos âmbitos e etapas da
vida”, conclui o estudo.
Todas as mortes têm efeito nos familiares diretos.
Mas nas causadas pelo coronavírus, o impacto é singular e maior. Entre as
causas da especial incidência das mortes por covid, segundo o estudo,
destaca-se que estas são “repentinas e imprevistas” frente a outras causadas
por doenças mais prolongadas. Não se conta com um apoio familiar e social
amplo, devido às medidas de confinamento, e o ritual depois da morte se vê
afetado pela restrição no número de pessoas autorizadas nos sepultamentos.
A
cifra de impacto coincide com outra recentemente publicada por
pesquisadores da Universidade de Cambridge no British Medical Journal (BMJ).
Esse estudo aponta como vítimas colaterais, especialmente, “aqueles que tiveram
que enfrentar mortes súbitas, inesperadas ou em UTIs, onde seus seres queridos
sofreram sintomas graves, incluindo dificuldade para respirar e agitação ao
final da vida”. “Pode haver uma epidemia silenciosa de dor que ainda não
captamos”, admitiu um médico de medicina paliativa aos pesquisadores.
O estudo
também coincide em que “as medidas de distanciamento social deixaram
alguns morrerem sozinhos”, e afirma que “todos estes fatores significam que os
riscos por lutos complicados se tornaram mais altos durante a pandemia”.
Segundo o
estudo, as fórmulas de apoio por telefone ou videoconferência foram “uma faca
de dois gumes”. Por um lado, aumentou algumas oportunidades de apoio ao
luto às quais crianças e jovens foram mais receptivos. Entretanto, os
responsáveis por cuidados paliativos as consideraram “exaustivas” e de “difícil
manejo”.
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