A universidade pública pronta para o desmonte
por Daniel
Gorte-Dalmoro*
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - Campus Pampulha/Belo Horizonte - MG. Foto: Divulgação UFMG. |
Na educação não foi diferente, e o
estado de ruína (atual) da educação básica brasileira é uma das consequências
dessa investida: a decadente escola pública foi sucateada, e a seleção via
mercado do melhor ensino, sem o contraponto de uma (real) alternativa estatal,
conseguiu rebaixar a educação ao grau de indigência (claro, a interdição do
debate sobre educação, atropelado pela prioridade às questões econômicas, como
faz o "Todos pela educação", deu uma boa ajuda).
Diferentemente da educação básica, a
universidade pública, apesar de cambaleante, conseguiu sobreviver à rosa
neoliberal (só não se esqueça da rosa, da rosa) - Paulo Renato (de nefasta
memória) não conseguiu estabelecer seu "financiamento por aluno e não por instituição",
nem desidratar por completo as universidades federais via perdas salariais.
Debito esse poder de resistência a dois fatores principais: a função da
universidade pública na estrutura social brasileira e o capital simbólico de
seus professores-pesquisadores.
Domingo, dia 24 de julho, o porta-voz
oficial do governo golpista, o Globo, oficializou abertamente o período de caça
à universidade pública, com seu editorial "Crise força o fim do injusto
ensino superior gratuito". Ainda mais que na época fernandina, o ataque
desta feita corre sério risco de alcançar seu intento num médio prazo, por obra
do contexto em que vivemos - e a universidade pública tem sua parcela de
responsabilidade.
Universidade
pública e falta de auto-reflexão
Universidade de Brasília (UnB). Fonte: Correio Braziliense. |
Ano passado, numa aula na PUC-SP, a
professora Helena Katz chamou a atenção para o fato de que as universidades
federais estavam há três meses em greve e pouco, quase nada, era noticiado; que
poucas pessoas fora do círculo diretamente afetado se incomodavam de fato com
essa greve - em clara dissonância com a importância que a universidade pública
tem para o país. Esse exemplo joga algumas luzes na relação que a universidade
pública consegue (ou não) estabelecer com a sociedade, dando base para a
acusação de elitista acaba tendo apelo junto a parte da população: que
utilidade a população enxerga numa universidade pública, para além da formação
profissional de indivíduos e do seu hospital universitário?
Uma pergunta que a universidade
pública, se se faz (muito raramente), tem preguiça (ou medo) de buscar respostas
e, mais importantes, soluções. E enquanto não se põe a sério esse
questionamento, reforça-se a idéia de uma grande escola de nível superior que
serve para meia dúzia de favorecidos conseguirem os melhores salários depois de
formado.
Função social e popularização
Entretanto, o grande calcanhar de
Aquiles na atual conjuntura é a função social da universidade pública, posta
(positivamente) em xeque com o ministério Haddad (2005-2012), que promoveu
tanto a melhoria dos salários dos docentes (e as estaduais, em especial as
paulistas, tiveram que reverter seu processo de sucateamento, para fazer frente
à administração petista) quanto sua popularização (discreta, mas visível), via
ampliação e interiorização da rede de universidades federais. Um primeiro resultado
foi a perda do poder de distinção que um diploma de uma universidade pública
naturalmente tinha até o início do século - ou melhor, a distinção segue, o
problema é que há mais distintos disputando as vagas.
Parte da perda dessa distinção foi
compensada com o aumento de bolsistas enviados para estudar no exterior -
oportunidade raras vezes dadas aos mais pobres, uma vez que estes precisam
trabalhar a sério para ajudar no sustento da família; e, mesmo assim, o
diploma, tendo feito parte na gringa ou não, é o mesmo - e com a manutenção de
um grande gargalo no nível de mestrado e doutorado - distinções necessárias
quando há muitos bacharéis.
O problema é que a universidade
pública brasileira tem como função (implícita mas evidente) formar quadros para
o Estado: ministérios, judiciário, diplomacia, pesquisadores diversos, etc.
Durante os anos FHC, algumas instituições privadas buscaram entrar nesse nicho
e tentaram se especializar na formação de quadros altamente qualificados; sem
sucesso, foram empurrados para a vala comum da educação como mercadoria e lucro
- até mesmo a PUC se viu obrigada a aderir à onda. A universidade pública
resistia.
Raymundo Faoro apontava, em Os Donos
do Poder, que certo espectro do funcionarismo público tupiniquim é uma
verdadeira casta, em que uma ocupação na burocracia estatal é transmitida de
pai para filh@ - a filha do juiz vira desembargadora com a ajuda do
prestígio do papai, por exemplo. Pode ser que tal transmissão da função social
não se dê no mesmo cargo, mas fica nessa esfera dos 1% ou 2% mais ricos da
nação, pagos com dinheiro público, neste país nota 52,1 no índice Gini de
desigualdade (recentemente fomos superados pelo Chile da educação superior
privada que neoliberais tanto idolatram).
Ou seja, a universidade pública brasileira
atende, sim, à elite do país. Ela também atende, entretanto, a muitas pessoas
que não compõem essa classe, permitindo, inclusive, que pessoas de fora da
casta dos donos do poder ambicionem e alcancem cargos de relevo na burocracia
do Estado e no mercado. Acabar com a gratuidade é criar um empecilho a mais na
deselitização da universidade pública - acreditar no contrário é duvidar da
lógica mais elementar, e quem acredita no editorial do Globo já pode discutir
se um quadrado precisa mesmo ter quatro lados.
Formas legítimas de
exclusão
A seleção de ingresso nas
universidade públicas é viciada, exclui os mais pobres, favorece os mais ricos.
A tal meritocracia é uma falácia em uma sociedade de fortes diferenças
sócio-econômicas - Bourdieu faz essa acusação contra a França
pré-rosa-neoliberal, imagina no Brasil pós-Real.
O vício da seleção se dá não apenas
pela questão da educação básica privada cara ser de melhor qualidade que a
educação básica pública (a educação privada barata e média, com raras exceções,
é do mesmo nível da escola pública, mas parece melhor por causa da
publicidade), como pelo cabedal cultural que os vestibulandos trazem de casa:
alguém que desde os doze anos visita o Louvre e o MoMA tem outra leitura de
mundo frente alguém que uma vez foi na Pinacoteca, frente a quem só conhece
música clássica de ouvir na internet, frente a quem só assiste a Faustão e
afins. Isso é determinante? Não (eu mesmo só visitei um museu pela primeira vez
com vinte anos e fui aluno da USP e da Unicamp), mas a influência não é
pequena.
Contudo, uma vez superada essa forma
legítima de exclusão primeira que é o vestibular, a dificuldade a quem não é da
elite é aumentada e pode ser percebida, por exemplo, nas concessões de bolsas
de estudo, de graduação ou de pós, que acabam, via de regra, na mão dos que não
precisam dividir seu tempo entre ganhar a vida para pagar as contas e estudar
para tirar boas notas.
Concorrência dos
neófitos
Apesar de sempre entrarem na disputa
em vantagem, os donos do poder têm se mostrado incomodado com a concorrência de
neófitos - muitos deles oriundos das periferias, ainda por cima negros -, e
desacostumados com concorrência, temendo ter sua auto-estima destruída ao ser
preterido por um Zé Ninguém, têm percebido que vale mais a pena mandar o filho
estudar direto no exterior: os contatos feitos nos seus intercâmbios quando
estudantes (ou já como professores-pesquisadores) ajudam a "alocar"
sua prole em algum bom lugar na Europa ou nos EUA. Amigos que trabalham no
judiciário ou na área administrativa diretamente com a nata uspiana, foram quem
primeiro comentaram dessa tendência.
De início não dei muita atenção: me
soou apenas esnobismo de quem pode manter o filho na University of British
Columbia, em Paris ou em Berlim, apesar de ganhar em real, graças a sua boa
colocação dentro da burocracia estatal brasileira. Me dou conta agora: com os
filhos dos donos do poder fazendo sua formação no exterior, a função social de
reprodução de classe - de casta - da universidade pública começa a ficar seriamente
ameaçada - função, repito, que garantiu sua sobrevivência ao desmonte
tucano-neoliberal.
Burocratas pouco
interessados em educação
Boa parte dos
professores-pesquisadores da universidade pública são burocratas que pouco se
importam com educação, desde que seu salário seja bom e caia no dia, e tenham
alguma estrutura de pesquisa. Nicolelis há tempos alerta para o fato de
professor-pesquisador no Brasil ser antes de mais nada um burocrata - não por
acaso o ápice da carreira universitária no país parece ser ocupar um cargo
burocrático de alto-escalão com grande relevância política, reitoria ou direção
da Fapesp, por exemplo.
Cristóvão Buarque (de nefasto
presente) exemplifica esse absurdo da pesquisa subordinada à burocracia: se um
artista egresso da universidade se tornar nacional e internacionalmente
reconhecido e alguém estudar sua obra em um mestrado e doutorado, é este - e
não o artista - o detentor do saber, simplesmente porque tem mais títulos
burocráticos que o primeiro.
Muito ego, pouca vocação e pouco
interesse com a educação (mesmo entre aqueles que teriam educação como seu
objeto de pesquisa), crescimento da turba em cargos importantes na burocracia,
muita sede de poder. Num contexto desses, a universidade é um meio, não um fim.
Meio para entrar na casta dos donos do poder e de ascender à classe política,
para lidar diretamente com o dinheiro e seus caminhos ocultos - Herman
Voorwald, ex-reitor da Unesp e ex-secretário de educação de Alckmin, pouco
afeito à democracia e à publicidade de seus atos (em especiais quanto à
merenda) que o diga.
Um dos resultados dessa utilização
para fins outros da universidade pública está na crise das universidades
estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro. Ou alguém acredita que tal situação
seja fruto de uma inefável crise estrutural e não de escolhas deliberadas de
seus reitores, em sintonia com os governadores que os puseram no cargo, todos
sempre alinhados aos interesses do mercado? Se fosse estrutural, porque as
universidades federais, em situação muito mais precária quinze anos atrás, já
não quebraram faz tempo? Não só isso: conseguiram certa expansão com ganho
relativo de qualidade? Será pura coincidência que as estaduais com os maiores
problemas financeiros sejam exatamente as dos estados que há tempos estão sob
hegemonia de políticos privatistas, PSDB em São Paulo, há mais de um quarto de
século, PMDB no Rio, há quase uma década?
É tanta coincidência quanto foi a
passagem do Cometa Halley em 1986, e será em 2061. Detalhe: via de regra, tais
reitores foram escolhidos por seus pares (exceção feita a Rodas, da USP,
escolhido por Serra, de nefasto passado, presente e, ao que tudo indica,
futuro), o que reforça a idéia da ciência (e os cientistas) estar a serviço do
poder - e o conseqüente caráter conservador da academia.
Problemas
essenciais e omissão de debate
O professor Fausto Castilho, um dos
fundadores da Unicamp, comentava que universidade brasileira possuía um erro
fundamental: ser definida como local de ensino e não de estudo. Certa feita,
durante uma atividade de greve, o historiador Cláudio Batalha levou a uma mesa
redonda a distinção entre universidade de ensino e universidade de pesquisa,
amparado em uma série de dados, como relação professor-alunos, número de
pós-graduandos e de graduandos, forma de abertura de um curso de graduação,
etc: ainda que ambas desenvolvam pesquisa e ensino, há diferenças
significativas de ênfase, e sem a devida distinção cobra-se rendimento de
universidades de pesquisa em estruturas de universidades de ensino.
Contudo, assumir essa distinção
poderia abrir a porta para o questionamento de outras distinções dentro dessa
elite, até mesmo para ressentimentos intraclasse que poderiam levar a sua
desunião: melhor fingir que são todos iguais, ao menos no prestígio e
distinção, mesmo que isso custe a qualidade de ensino e de pesquisa em todas as
universidades. Um dos custos da omissão desse debate vai além da distinção,
poderia ser contabilizado em termos financeiros: alunos que entram em uma
universidade como a Unicamp sem qualquer interesse em pesquisa, e acabam
subutilizando a estrutura da universidade. Pior: não raro tais alunos saem
frustrados por não saírem devidamente preparados para o mercado.
E deveria a universidade pública
preparar para o mercado? Eis um debate posto com certa freqüência, mas sempre
em termos falsos, uma vez que é discutido a partir de posições ideológicas
desvinculadas de uma análise do contexto histórico e social em que a
universidade está inserida. Mais: sem uma reflexão sobre qual o papel da
universidade pública brasileira, em especial as voltadas à pesquisa. Acaba por
prevalecer a posição de que não, universidade pública não serve para atender
demandas do mercado - o que deixa claro, mesmo que nunca dito, sua função de
formação de quadros do Estado -, ainda que acabe sempre cedendo em parte.
Nada mais óbvio: vivemos em uma
sociedade capitalista (goste ou não, isso é indiferente), em que o mercado é o
grande responsável pelas trocas interpessoais, inclusive de conhecimento - eu,
ao menos, não acredito que o livro de uma grande editora comprada numa livraria
(na Amazon?) esteja alheia à lógica da mercadoria e do lucro.
Essa interdição de um debate sério
sobre a relação da universidade pública com o mercado é que acaba dando a deixa
para o ataque de grupos pró-mercado de defender não o convívio (tenso e
difícil, não sejamos ingênuos) entre universidade e mercado, mas a subjugação
daquela a este - expressa em propostas como o fim da gratuidade ou parcerias
com empresas que são antes a determinação de linhas de pesquisa feitas com
dinheiro público.
Exclusivismo na
produção do saber
Há um agravante no caso brasileiro,
fruto da posição que a universidade pública se arrola no contexto social, de
única legitimadora do conhecimento. A universidade brasileira é uma mistura de
iluminismo démodé com síndrome de vira-latas: ela resiste a aceitar que fora de
seus muros seja possível produção de saber e de conhecimento - uma população
mestiça e negra, já diziam os doutos do século XIX, pouco pode contribuir para
o progresso, não é?
Ou melhor: ela até aceita, mas só
depois de passar pelo seu crivo - que pouco ou nada acrescenta, e tem como
única função a legitimação desse saber. Ela é reticente em estabelecer um
diálogo de igual para igual com quem está fora, mesmo que seu interlocutor seja
um doutor formado por ela própria. Novamente um exemplo das artes: é cada vez
mais comum artistas utilizarem sua formação acadêmica para se apresentarem como
artistas (e eu tenho vontade de lembrar Manzoni a esses artistas).
Por um lado, essa postura garante um
enorme poder social: ao se afirmar não apenas centro, mas única fonte de
produção de conhecimento (legítimo), o ataque à universidade pública pode ser
tratado como equivalente a um ataque à ciência e ao conhecimento deste Tristes
Trópicos. Seu quase monopólio de pesquisa no país encoraja as empresas a se
desobrigarem de investirem diretamente em pesquisa e tecnologia - investimento
que não raro é acusado por alguns grupos como seqüestro de cérebros da
universidade -, e se tornarem compradores de patentes economicamente viáveis
desenvolvidas pelos laboratórios acadêmicos (nas ciências humanas, a
universidade pública assume um papel perverso que não cabe discorrer aqui).
Conseqüência disso para o país: ao
mesmo tempo que é pólo de produção de conhecimento, ou seja, indutor de
progresso científico e tecnológico, a universidade pública se torna uma grande
força conservadora - quase reacionária. Acrescente que tal arrogância faz com
que a universidade se torne ainda mais autista da realidade brasileira, se
afaste das questões que afligem a maioria da população, e não desperte nela
maior interesse: esta não só não se vê como desinteressante para a academia -
salvo como fonte de exotismo -, como não vê interesse naquilo que a academia
produz e oferece, para além do seu hospital.
Fim da gratuidade e
ainda público
Com o diálogo com a comunidade
externa praticamente inexistente, e com um diálogo interno precário - fruto do
seu furto a se questionar a sério -, a universidade pública está à mercê de
ataques dos setores mais reacionários do país - tão bem representados nesse
golpe de Estado judiciário-midiático encabeçado por Temer e PSDB. Desde que
entrei na universidade, em 2001, lembro de poucas vezes haver um
auto-questionamento sobre sua função e sua relação com o país - em todas elas,
falas isoladas de alguns professores outsiders e pouco levados em consideração.
Entretanto, há um profundo incômodo
da sociedade brasileira com a universidade pública sustentada com seus
impostos, e se a academia não encabeça esse debate, outros o farão: quem
começar o debate leva vantagem na imposição dos termos em que ele se dará. As
outras forças com poder para colocar tal debate são, além da própria
universidade, o governo e a grande imprensa. Haddad, ainda que sutilmente,
colocou a função da universidade em debate - foi aceito passivamente pela
academia, até por não tocar diretamente em seus pontos mais sensíveis, como de
reprodução de casta. Agora, diante de um ministério de neandertais, o Globo
achou por bem assumir o debate, de forma a pô-lo em termos passíveis de serem
aceitos.
O editorial não propõe o fim ou a
privatização da universidade pública, e sim o "ensino superior público
pago". Uma privatização branca, sem dúvida, mas algo que vai na linha do
que a universidade pública brasileira é hoje: antes de acusarem de quererem
impôr a lógica shopping center às universidades, a academia brasileira nunca
fez um mea culpa de que os shopping centers na verdade é que seguem a lógica da
universidade tupiniquim: seus campi são áreas isoladas (originalmente),
cercadas, de difícil acesso que não por carro (a área de estacionamento não
demonstra seu real tamanho pelo fato dos campi geralmente serem muito grandes),
guardadas por segurança privada, altamente normatizadas, hierarquizadas,
segregadas. Poucas universidades têm biblioteca pública aberta à comunidade, ao
público: há dez anos UFSCar e UERJ eram as duas exceções, e parecem seguir
sendo as únicas. A Unicamp chega ao extremo de bloquear a entrada em suas
bibliotecas a quem não é aluno regularmente matriculado.
A UFABC bloqueia qualquer intruso
logo na entrada do prédio. Fica difícil mobilizar a população na defesa de uma
universidade que a repele e a trata como suspeita - e neste ponto não há
qualquer culpa a ser atribuída ao Globo ou a Temer, a universidade pública cai
por seus próprios deméritos. As pesquisas são majoritariamente para consumo interno
e raros professores descem de seu pedestal para encararem as ruas - até porque
têm pés de barros. Chauí até início do século, Safatle desde o retiro dessa, e
mais recentemente Karnal são alguns dos raros exemplos de professores que
saíram dar a cara a tapa - há, sim, aqueles que estabelecem diálogos menos
midiáticos, diretamente com movimentos sociais e sindicatos, mas são poucos que
tem capacidade para tal, por cacoete de formação: a maioria discursa, não desce
para o debate e o diálogo franco.
Arrisco próximos capítulos: além da
cobrança de mensalidade, a intensificação de parecerias em laboratórios de
pesquisa com a iniciativa privada, como forma não apenas de captar recursos
extras, como para aumentar o número de patentes e o lançamento de produtos no
mercado. Boa parte dos professores-pesquisadores aceitarão esses termos, desde
que não tenham seus rendimentos afetados. Para boa parte da academia, não há
mais necessidade de manter a universidade pública tal como hoje, já que sua
função de formar quadros para o Estado vem decaindo, e eles enviam seus filhos
para estudar nos EUA ou na Europa: de lá, sem compromisso com agências
brasileiras, sua prole pode fazer carreira acadêmica no exterior ou regressar
para carreiras burocráticas mais promissoras no Brasil, que podem impôr suas
vontades, perseguir adversários políticos e sambar em cima da constituição sem
qualquer problema. Tais propostas são capazes de até mesmo gerar a impressão de
maior proximidade entre universidade pública e sociedade - o que compensará,
aos olhos desses, sua maior elitização e discriminação.
As propostas da grande imprensa -
agora verbalizada pelo Globo, mas em outros tempos já vocalizadas por outros
mafiosos midiáticos - são claramente reacionárias, mas encontram eco na
sociedade - mesmo entre os egressos da universidade pública -, repito, graças à
precariedade de sua reflexão e seu questionamento sobre si própria - não sei se
por um narcisismo que não tolera críticas ou se por comodismo. Não por acaso,
diante da celeuma causada pelo editorial, vem de fora da universidade uma das
propostas mais sensatas (ainda que tardia): Jean Wyllys propõe "um tributo
adicional para as faixas mais altas do Imposto de Renda (depois de mudar a
tabela para que estas sejam pagas pelos ricos de verdade e não pela classe
média) que alcance os cidadãos com alta renda que estudaram e se formaram numa
universidade pública, e destinemos esse dinheiro a um fundo especial para abrir
mais vagas e pagar bolsas de permanência para os estudantes mais pobres".
Sobre essa proposta, penso apenas que tal tributo adicional não precisa esperar
pela (necessária) reforma do IR: precisa acontecer já, antes que acabe por
afetar somente (novamente) a classe-média. Aos que não querem pagar o resto da
vida pelo ensino que tiveram, têm toda a liberdade para optarem por
universidade particulares - essas, sim, com cobrança de mensalidades.
O que significa
debater a universidade pública
Por fim, passa ao largo a real
significação do debate sobre a universidade pública - ainda mais no atual
contexto de crises. Cobrança de mensalidade e formas de financiamento são
questões epidérmicas - ouso dizer de menor importância, ainda que não devam ser
desprezadas. Quando discutimos universidade pública estamos discutindo, antes
de mais nada, projeto de nação. A história da universidade pública no Brasil é
reflexo dos projetos de nação que motivaram sua criação e suas mudanças
(inclusive ainda estamos presos, em grande medida, na visão fundante da USP).
Perdemos, durante o governo Lula e o
ministério Haddad, uma oportunidade ímpar de discutirmos a sério projetos de
nação e perspectivas de futuro a partir de um ponto fulcral, a universidade
pública - suas funções, sua relação com o país, a produção de conhecimento. As
reformas de Lula apontavam numa direção razoável e a universidade pública se
acomodou, se furtando, uma vez mais, a refletir sobre si própria. Não
discutimos no momento ideal, mas o editorial do Globo e o governo golpista
(espero que interino), dão nova oportunidade de pôr a questão no centro do
debate nacional. Mais que discutir sobre mensalidade e financiamento, é preciso
que a universidade pública brasileira se abra à democracia - interna e externa
-, exponha sua função social, descubra novas formas de se inserir na realidade
que a rodeia, popularize e compartilhe o conhecimento dentro dela produzido -
sem medo de ser contradita e contestada em seus doutos saberes por periféricos
e analfabetos que, sim, possuem muito conhecimento, mesmo sem ter passado pelo
ensino oficial.
Se insistir em repelir a população
que a sustenta como bárbaros que vão destruí-la, a universidade pública não
tarda a perder sua razão de ser, se transformando nisso que a desenham: uma
escola de nível superior que abre os melhores cargos na burocracia do estado e do
mercado.
Importante para este texto, falar sobre o autor: Daniel gorte-dalmoro é bacharel em filosofia e sociologia pela Unicamp, mestre em filosofia pela PUC-SP, licenciado em filosofia por uma universidade particular. Também foi aluno de graduação na USP e na UFABC. Entre 2007 e 2010 foi um grupo de crítica de costumes da Unicamp, o Trezenhum. Humor sem graça. Foi editor da revista eletrônica Casuística. artes antiartes heterodoxias. É editor do Boletim SPM Informa e do Informativo Vai e Vem, do Serviço Pastoral do Migrante.* Publicado quarta-feira, 03/08/2016
Algumas referências citadas:
http://www.andifes.org.br/crise-forca-o-fim-do-injusto-ensino-superior-g...
http://jornalggn.com.br/noticia/o-xadrez-dos-concurseiros-do-servidor-pu...
http://www.viomundo.com.br/entrevistas/nicolelis-e-a-comissao-da-ciencia...
https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/21...
http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2479685
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/as-cinco-mentiras-do-globo-sobr...
http://www.andifes.org.br/crise-forca-o-fim-do-injusto-ensino-superior-g...
http://jornalggn.com.br/noticia/o-xadrez-dos-concurseiros-do-servidor-pu...
http://www.viomundo.com.br/entrevistas/nicolelis-e-a-comissao-da-ciencia...
https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/21...
http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2479685
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/as-cinco-mentiras-do-globo-sobr...
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