Em outubro de 2011, a mulher que usava codinome e
que seria alçada nove anos mais tarde ao posto de presidente do Brasil revelou
em depoimento, até agora inédito, o sofrimento vivido nos porões da ditadura em
Minas
Sandra Kiefer*
A presidente Dilma Vana Rousseff foi torturada nos
porões da ditadura em Juiz de Fora, Zona da Mata mineira, e não apenas em São
Paulo e no Rio de Janeiro, como se pensava até agora. Em Minas, ela foi
colocada no pau de arara, apanhou de palmatória, levou choques e socos que causaram
problemas graves na sua arcada dentária. É o que revelam documentos obtidos com
exclusividade pelo Estado de Minas , que até então mofavam na última sala do
Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG). As instalações do
conselho ocupam o quinto andar do Edifício Maletta, no Centro de Belo
Horizonte. Um tanto decadente, sujeito a incêndios e infiltrações, o velho
Maletta foi reduto da militância estudantil nas décadas de 1960 e 70.
Perdido entre caixas-arquivo de papelão, empilhadas
até o teto, repousa o depoimento pessoal de Dilma, o único que mereceu uma
cópia xerox entre os mais de 700 processos de presos políticos mineiros
analisados pelo Conedh-MG. Pela primeira vez na história, vem à tona o
testemunho de Dilma relatando todo o sofrimento vivido em Minas na pele da
militante política de codinomes Estela, Stela, Vanda, Luíza, Mariza e também
Ana (menos conhecido, que ressurge neste processo mineiro). Ela contava então
com 22 anos e militava no setor estudantil do Comando de Libertação Nacional
(Colina), que mais tarde se fundiria com a Vanguarda Popular Revolucionária
(VPR), dando origem à VAR-Palmares.
As terríveis sessões de tortura enfrentadas pela
então jovem estudante subversiva já foram ditas e repisadas ao longo dos
últimos anos, mas os relatos sempre se referiam ao eixo Rio-São Paulo,
envolvendo a Operação Bandeirantes, a temida Oban de São Paulo, e a cargeragem
na capital fluminense. Já o episódio da tortura sofrida por Dilma em Minas,
onde, segundo ela própria, exerceu 90% de sua militância durante a ditadura,
tinha ficado no esquecimento. Até agora.
Com a palavra, a presidente: “Algumas
características da tortura. No início, não tinha rotina. Não se distinguia se
era dia ou noite. Geralmente, o básico era o choque”. Ela continua: “(...) se o
interrogatório é de longa duração, com interrogador experiente, ele te bota no
pau de arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa
rastro, só te mina. Muitas vezes usava palmatória; usaram em mim muita palmatória.
Em São Paulo, usaram pouco este ‘método’”.
Bilhetes Dilma foi transferida em janeiro de 1972
para Juiz de Fora, ficando presa possivelmente no quartel da Polícia do
Exército, a 4ª Companhia da PE. Nesse ponto do depoimento, falham as memórias
do cárcere de Dilma e ela crava apenas não ter sido levada ao Departamento de
Ordem e Política Social (Dops) de BH. Como já era presa antiga, a militante
deveria ter ido a Juiz de Fora somente para ser ouvida pela auditoria da 4ª
Circunscrição Judiciária Militar (CJM). Dilma pensou que, como havia ocorrido
das outras vezes, estava vindo de São Paulo a Minas para a nova fase do
julgamento no processo mineiro. Chegando a Juiz de Fora, porém, ela afirma ter
sido novamente torturada e submetida a péssimas condições carcerárias,
possivelmente por dois meses.
Nesse
período, foi mantida na clandestinidade e jogada em uma cela, onde permaneceu
na maior parte do tempo sozinha e em outra na companhia de uma única presa,
Terezinha, de identidade desconhecida. Dilma voltou a apanhar dos agentes da
repressão em Minas porque havia a suspeita de que Estela teria organizado, no
fim de 1969, um plano para dar fuga a Ângelo Pezzuti, ex-companheiro da
organização Colina, que havia sido preso na ex-Colônia Magalhães Pinto, hoje Penitenciária
de Neves. Os militares haviam conseguido interceptar bilhetinhos trocados entre
Estela (Stela nos bilhetes, codinome de Dilma) e Cabral (Ângelo), contendo
inclusive o croqui do mapa do presídio, desenhado à mão (veja reproduções ao
lado).
Seja por
discrição ou por precaução, Dilma sempre evitou falar sobre a tortura. Não
consta o depoimento dela nos arquivos do grupo Tortura Nunca Mais, nem no livro
Mulheres que foram à luta armada, de Luiz Maklouf, de 1998. Só mais tarde, em
2003, ele conseguiria que Dilma contasse detalhes sobre a tortura que sofrera
nas prisões do Rio e de São Paulo. Em 2005, trechos da entrevista foram
publicados. Naquela época, a então ministra acabava de ser indicada para ocupar
a Casa Civil.
O
relato pessoal de Dilma, que agora se torna público, é anterior a isso. Data de
25 de outubro de 2001, quando ela ainda era secretária das Minas e Energia no
Rio Grande do Sul, filiada ao PDT e nem sonhava em ocupar a cadeira da
Presidência da República. Diante do jovem filósofo Robson Sávio, que atuava na
coordenação da Comissão Estadual de Indenização às Vítimas de Tortura (Ceivt)
do Conedh-MG, sem remuneração, Dilma revelou pormenores das sessões de
humilhação sofridas em Minas. “O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela
primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do
medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente pelo resto da
vida”, disse.
Humilde Apesar de ser ainda apenas a secretária
das Minas e Energia, a postura de Dilma impressionou Robson: “A secretária
tinha fama de durona. Ela já chegou ao corredor com um jeito impositivo, firme,
muito decidida. À medida que foi contando os fatos no seu depoimento, ela foi
se emocionando. Nós interrompemos o depoimento e ela deixou a sala com uma
postura diferente em relação ao momento em que entrou. Saiu cabisbaixa”, conta
ele, que teve três dias de prazo para colher sete depoimentos na capital
gaúcha. Na avaliação de Robson, Dilma teve uma postura humilde para a época ao
concordar em prestar depoimento perante a comissão. “Com ou sem o depoimento
dela, a comissão iria aprovar a indenização de qualquer jeito, porque já tinha
provas suficientes. Mas a gente insistia em colher os testemunhos, pois tinha a
noção de estar fazendo algo histórico”, afirma o filósofo.
*Jornal Estado de Minas (EM). Publicado: 17/06/2012
07:05 Atualização: 17/06/2012 16:18
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