sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Autonomia e desenvolvimento das universidades públicas estão em xeque no Brasil

A universidade pública pronta para o desmonte
por Daniel Gorte-Dalmoro*
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - Campus Pampulha/Belo Horizonte - MG. Foto: Divulgação UFMG.
Durante a década de 1990, encabeçado por FHC e sua trupe (estatal e para-estatal), todo serviço público (que não o serviço da dívida) foi duramente atacado e o mercado louvado como capaz de melhorar qualquer coisa à enésima potência, sem maiores esforços dos ex-cidadãos, agora consumidores.
Na educação não foi diferente, e o estado de ruína (atual) da educação básica brasileira é uma das consequências dessa investida: a decadente escola pública foi sucateada, e a seleção via mercado do melhor ensino, sem o contraponto de uma (real) alternativa estatal, conseguiu rebaixar a educação ao grau de indigência (claro, a interdição do debate sobre educação, atropelado pela prioridade às questões econômicas, como faz o "Todos pela educação", deu uma boa ajuda).
Diferentemente da educação básica, a universidade pública, apesar de cambaleante, conseguiu sobreviver à rosa neoliberal (só não se esqueça da rosa, da rosa) - Paulo Renato (de nefasta memória) não conseguiu estabelecer seu "financiamento por aluno e não por instituição", nem desidratar por completo as universidades federais via perdas salariais. Debito esse poder de resistência a dois fatores principais: a função da universidade pública na estrutura social brasileira e o capital simbólico de seus professores-pesquisadores.
Domingo, dia 24 de julho, o porta-voz oficial do governo golpista, o Globo, oficializou abertamente o período de caça à universidade pública, com seu editorial "Crise força o fim do injusto ensino superior gratuito". Ainda mais que na época fernandina, o ataque desta feita corre sério risco de alcançar seu intento num médio prazo, por obra do contexto em que vivemos -  e a universidade pública tem sua parcela de responsabilidade.

Universidade pública e falta de auto-reflexão
Universidade de Brasília (UnB). Fonte: Correio Braziliense.
Uma das principais dificuldades da universidade pública brasileira é refletir sobre si própria em termos críticos - e aqui me refiro à parte inteligente da academia, gostaria eu que fosse a maioria, mas tenho sérias dúvidas. Uma reflexão dessa natureza implicaria, dentre outras coisas, em questionar o lugar que a universidade pública ocupa atualmente no contexto brasileiro, o que dela se espera - realista e irrealisticamente -, e que discurso ela faz acerca de si própria.
Ano passado, numa aula na PUC-SP, a professora Helena Katz chamou a atenção para o fato de que as universidades federais estavam há três meses em greve e pouco, quase nada, era noticiado; que poucas pessoas fora do círculo diretamente afetado se incomodavam de fato com essa greve - em clara dissonância com a importância que a universidade pública tem para o país. Esse exemplo joga algumas luzes na relação que a universidade pública consegue (ou não) estabelecer com a sociedade, dando base para a acusação de elitista acaba tendo apelo junto a parte da população: que utilidade a população enxerga numa universidade pública, para além da formação profissional de indivíduos e do seu hospital universitário?
Uma pergunta que a universidade pública, se se faz (muito raramente), tem preguiça (ou medo) de buscar respostas e, mais importantes, soluções. E enquanto não se põe a sério esse questionamento, reforça-se a idéia de uma grande escola de nível superior que serve para meia dúzia de favorecidos conseguirem os melhores salários depois de formado.
Função social e popularização
Entretanto, o grande calcanhar de Aquiles na atual conjuntura é a função social da universidade pública, posta (positivamente) em xeque com o ministério Haddad (2005-2012), que promoveu tanto a melhoria dos salários dos docentes (e as estaduais, em especial as paulistas, tiveram que reverter seu processo de sucateamento, para fazer frente à administração petista) quanto sua popularização (discreta, mas visível), via ampliação e interiorização da rede de universidades federais. Um primeiro resultado foi a perda do poder de distinção que um diploma de uma universidade pública naturalmente tinha até o início do século - ou melhor, a distinção segue, o problema é que há mais distintos disputando as vagas.
Parte da perda dessa distinção foi compensada com o aumento de bolsistas enviados para estudar no exterior - oportunidade raras vezes dadas aos mais pobres, uma vez que estes precisam trabalhar a sério para ajudar no sustento da família; e, mesmo assim, o diploma, tendo feito parte na gringa ou não, é o mesmo - e com a manutenção de um grande gargalo no nível de mestrado e doutorado - distinções necessárias quando há muitos bacharéis.
O problema é que a universidade pública brasileira tem como função (implícita mas evidente) formar quadros para o Estado: ministérios, judiciário, diplomacia, pesquisadores diversos, etc. Durante os anos FHC, algumas instituições privadas buscaram entrar nesse nicho e tentaram se especializar na formação de quadros altamente qualificados; sem sucesso, foram empurrados para a vala comum da educação como mercadoria e lucro - até mesmo a PUC se viu obrigada a aderir à onda. A universidade pública resistia.
Raymundo Faoro apontava, em Os Donos do Poder, que certo espectro do funcionarismo público tupiniquim é uma verdadeira casta, em que uma ocupação na burocracia estatal é transmitida de pai para filh@ - a filha do juiz vira desembargadora com a ajuda do prestígio do papai, por exemplo. Pode ser que tal transmissão da função social não se dê no mesmo cargo, mas fica nessa esfera dos 1% ou 2% mais ricos da nação, pagos com dinheiro público, neste país nota 52,1 no índice Gini de desigualdade (recentemente fomos superados pelo Chile da educação superior privada que neoliberais tanto idolatram).
Ou seja, a universidade pública brasileira atende, sim, à elite do país. Ela também atende, entretanto, a muitas pessoas que não compõem essa classe, permitindo, inclusive, que pessoas de fora da casta dos donos do poder ambicionem e alcancem cargos de relevo na burocracia do Estado e no mercado. Acabar com a gratuidade é criar um empecilho a mais na deselitização da universidade pública - acreditar no contrário é duvidar da lógica mais elementar, e quem acredita no editorial do Globo já pode discutir se um quadrado precisa mesmo ter quatro lados.
Formas legítimas de exclusão
A seleção de ingresso nas universidade públicas é viciada, exclui os mais pobres, favorece os mais ricos. A tal meritocracia é uma falácia em uma sociedade de fortes diferenças sócio-econômicas - Bourdieu faz essa acusação contra a França pré-rosa-neoliberal, imagina no Brasil pós-Real.
O vício da seleção se dá não apenas pela questão da educação básica privada cara ser de melhor qualidade que a educação básica pública (a educação privada barata e média, com raras exceções, é do mesmo nível da escola pública, mas parece melhor por causa da publicidade), como pelo cabedal cultural que os vestibulandos trazem de casa: alguém que desde os doze anos visita o Louvre e o MoMA tem outra leitura de mundo frente alguém que uma vez foi na Pinacoteca, frente a quem só conhece música clássica de ouvir na internet, frente a quem só assiste a Faustão e afins. Isso é determinante? Não (eu mesmo só visitei um museu pela primeira vez com vinte anos e fui aluno da USP e da Unicamp), mas a influência não é pequena.
Contudo, uma vez superada essa forma legítima de exclusão primeira que é o vestibular, a dificuldade a quem não é da elite é aumentada e pode ser percebida, por exemplo, nas concessões de bolsas de estudo, de graduação ou de pós, que acabam, via de regra, na mão dos que não precisam dividir seu tempo entre ganhar a vida para pagar as contas e estudar para tirar boas notas.
Concorrência dos neófitos
Apesar de sempre entrarem na disputa em vantagem, os donos do poder têm se mostrado incomodado com a concorrência de neófitos - muitos deles oriundos das periferias, ainda por cima negros -, e desacostumados com concorrência, temendo ter sua auto-estima destruída ao ser preterido por um Zé Ninguém, têm percebido que vale mais a pena mandar o filho estudar direto no exterior: os contatos feitos nos seus intercâmbios quando estudantes (ou já como professores-pesquisadores) ajudam a "alocar" sua prole em algum bom lugar na Europa ou nos EUA. Amigos que trabalham no judiciário ou na área administrativa diretamente com a nata uspiana, foram quem primeiro comentaram dessa tendência.
De início não dei muita atenção: me soou apenas esnobismo de quem pode manter o filho na University of British Columbia, em Paris ou em Berlim, apesar de ganhar em real, graças a sua boa colocação dentro da burocracia estatal brasileira. Me dou conta agora: com os filhos dos donos do poder fazendo sua formação no exterior, a função social de reprodução de classe - de casta - da universidade pública começa a ficar seriamente ameaçada - função, repito, que garantiu sua sobrevivência ao desmonte tucano-neoliberal.
Burocratas pouco interessados em educação
Boa parte dos professores-pesquisadores da universidade pública são burocratas que pouco se importam com educação, desde que seu salário seja bom e caia no dia, e tenham alguma estrutura de pesquisa. Nicolelis há tempos alerta para o fato de professor-pesquisador no Brasil ser antes de mais nada um burocrata - não por acaso o ápice da carreira universitária no país parece ser ocupar um cargo burocrático de alto-escalão com grande relevância política, reitoria ou direção da Fapesp, por exemplo.
Cristóvão Buarque (de nefasto presente) exemplifica esse absurdo da pesquisa subordinada à burocracia: se um artista egresso da universidade se tornar nacional e internacionalmente reconhecido e alguém estudar sua obra em um mestrado e doutorado, é este - e não o artista - o detentor do saber, simplesmente porque tem mais títulos burocráticos que o primeiro.
Muito ego, pouca vocação e pouco interesse com a educação (mesmo entre aqueles que teriam educação como seu objeto de pesquisa), crescimento da turba em cargos importantes na burocracia, muita sede de poder. Num contexto desses, a universidade é um meio, não um fim. Meio para entrar na casta dos donos do poder e de ascender à classe política, para lidar diretamente com o dinheiro e seus caminhos ocultos - Herman Voorwald, ex-reitor da Unesp e ex-secretário de educação de Alckmin, pouco afeito à democracia e à publicidade de seus atos (em especiais quanto à merenda) que o diga.
Um dos resultados dessa utilização para fins outros da universidade pública está na crise das universidades estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro. Ou alguém acredita que tal situação seja fruto de uma inefável crise estrutural e não de escolhas deliberadas de seus reitores, em sintonia com os governadores que os puseram no cargo, todos sempre alinhados aos interesses do mercado? Se fosse estrutural, porque as universidades federais, em situação muito mais precária quinze anos atrás, já não quebraram faz tempo? Não só isso: conseguiram certa expansão com ganho relativo de qualidade? Será pura coincidência que as estaduais com os maiores problemas financeiros sejam exatamente as dos estados que há tempos estão sob hegemonia de políticos privatistas, PSDB em São Paulo, há mais de um quarto de século, PMDB no Rio, há quase uma década?
É tanta coincidência quanto foi a passagem do Cometa Halley em 1986, e será em 2061. Detalhe: via de regra, tais reitores foram escolhidos por seus pares (exceção feita a Rodas, da USP, escolhido por Serra, de nefasto passado, presente e, ao que tudo indica, futuro), o que reforça a idéia da ciência (e os cientistas) estar a serviço do poder - e o conseqüente caráter conservador da academia.
Problemas essenciais e omissão de debate
O professor Fausto Castilho, um dos fundadores da Unicamp, comentava que universidade brasileira possuía um erro fundamental: ser definida como local de ensino e não de estudo. Certa feita, durante uma atividade de greve, o historiador Cláudio Batalha levou a uma mesa redonda a distinção entre universidade de ensino e universidade de pesquisa, amparado em uma série de dados, como relação professor-alunos, número de pós-graduandos e de graduandos, forma de abertura de um curso de graduação, etc: ainda que ambas desenvolvam pesquisa e ensino, há diferenças significativas de ênfase, e sem a devida distinção cobra-se rendimento de universidades de pesquisa em estruturas de universidades de ensino.
Contudo, assumir essa distinção poderia abrir a porta para o questionamento de outras distinções dentro dessa elite, até mesmo para ressentimentos intraclasse que poderiam levar a sua desunião: melhor fingir que são todos iguais, ao menos no prestígio e distinção, mesmo que isso custe a qualidade de ensino e de pesquisa em todas as universidades. Um dos custos da omissão desse debate vai além da distinção, poderia ser contabilizado em termos financeiros: alunos que entram em uma universidade como a Unicamp sem qualquer interesse em pesquisa, e acabam subutilizando a estrutura da universidade. Pior: não raro tais alunos saem frustrados por não saírem devidamente preparados para o mercado.
E deveria a universidade pública preparar para o mercado? Eis um debate posto com certa freqüência, mas sempre em termos falsos, uma vez que é discutido a partir de posições ideológicas desvinculadas de uma análise do contexto histórico e social em que a universidade está inserida. Mais: sem uma reflexão sobre qual o papel da universidade pública brasileira, em especial as voltadas à pesquisa. Acaba por prevalecer a posição de que não, universidade pública não serve para atender demandas do mercado - o que deixa claro, mesmo que nunca dito, sua função de formação de quadros do Estado -, ainda que acabe sempre cedendo em parte.
Nada mais óbvio: vivemos em uma sociedade capitalista (goste ou não, isso é indiferente), em que o mercado é o grande responsável pelas trocas interpessoais, inclusive de conhecimento - eu, ao menos, não acredito que o livro de uma grande editora comprada numa livraria (na Amazon?) esteja alheia à lógica da mercadoria e do lucro.
Essa interdição de um debate sério sobre a relação da universidade pública com o mercado é que acaba dando a deixa para o ataque de grupos pró-mercado de defender não o convívio (tenso e difícil, não sejamos ingênuos) entre universidade e mercado, mas a subjugação daquela a este - expressa em propostas como o fim da gratuidade ou parcerias com empresas que são antes a determinação de linhas de pesquisa feitas com dinheiro público.
Exclusivismo na produção do saber
Há um agravante no caso brasileiro, fruto da posição que a universidade pública se arrola no contexto social, de única legitimadora do conhecimento. A universidade brasileira é uma mistura de iluminismo démodé com síndrome de vira-latas: ela resiste a aceitar que fora de seus muros seja possível produção de saber e de conhecimento - uma população mestiça e negra, já diziam os doutos do século XIX, pouco pode contribuir para o progresso, não é?
Ou melhor: ela até aceita, mas só depois de passar pelo seu crivo - que pouco ou nada acrescenta, e tem como única função a legitimação desse saber. Ela é reticente em estabelecer um diálogo de igual para igual com quem está fora, mesmo que seu interlocutor seja um doutor formado por ela própria. Novamente um exemplo das artes: é cada vez mais comum artistas utilizarem sua formação acadêmica para se apresentarem como artistas (e eu tenho vontade de lembrar Manzoni a esses artistas).
Por um lado, essa postura garante um enorme poder social: ao se afirmar não apenas centro, mas única fonte de produção de conhecimento (legítimo), o ataque à universidade pública pode ser tratado como equivalente a um ataque à ciência e ao conhecimento deste Tristes Trópicos. Seu quase monopólio de pesquisa no país encoraja as empresas a se desobrigarem de investirem diretamente em pesquisa e tecnologia - investimento que não raro é acusado por alguns grupos como seqüestro de cérebros da universidade -, e se tornarem compradores de patentes economicamente viáveis desenvolvidas pelos laboratórios acadêmicos (nas ciências humanas, a universidade pública assume um papel perverso que não cabe discorrer aqui).
Conseqüência disso para o país: ao mesmo tempo que é pólo de produção de conhecimento, ou seja, indutor de progresso científico e tecnológico, a universidade pública se torna uma grande força conservadora - quase reacionária. Acrescente que tal arrogância faz com que a universidade se torne ainda mais autista da realidade brasileira, se afaste das questões que afligem a maioria da população, e não desperte nela maior interesse: esta não só não se vê como desinteressante para a academia - salvo como fonte de exotismo -, como não vê interesse naquilo que a academia produz e oferece, para além do seu hospital.
Fim da gratuidade e ainda público
Com o diálogo com a comunidade externa praticamente inexistente, e com um diálogo interno precário - fruto do seu furto a se questionar a sério -, a universidade pública está à mercê de ataques dos setores mais reacionários do país - tão bem representados nesse golpe de Estado judiciário-midiático encabeçado por Temer e PSDB. Desde que entrei na universidade, em 2001, lembro de poucas vezes haver um auto-questionamento sobre sua função e sua relação com o país - em todas elas, falas isoladas de alguns professores outsiders e pouco levados em consideração.
Entretanto, há um profundo incômodo da sociedade brasileira com a universidade pública sustentada com seus impostos, e se a academia não encabeça esse debate, outros o farão: quem começar o debate leva vantagem na imposição dos termos em que ele se dará. As outras forças com poder para colocar tal debate são, além da própria universidade, o governo e a grande imprensa. Haddad, ainda que sutilmente, colocou a função da universidade em debate - foi aceito passivamente pela academia, até por não tocar diretamente em seus pontos mais sensíveis, como de reprodução de casta. Agora, diante de um ministério de neandertais, o Globo achou por bem assumir o debate, de forma a pô-lo em termos passíveis de serem aceitos.
O editorial não propõe o fim ou a privatização da universidade pública, e sim o "ensino superior público pago". Uma privatização branca, sem dúvida, mas algo que vai na linha do que a universidade pública brasileira é hoje: antes de acusarem de quererem impôr a lógica shopping center às universidades, a academia brasileira nunca fez um mea culpa de que os shopping centers na verdade é que seguem a lógica da universidade tupiniquim: seus campi são áreas isoladas (originalmente), cercadas, de difícil acesso que não por carro (a área de estacionamento não demonstra seu real tamanho pelo fato dos campi geralmente serem muito grandes), guardadas por segurança privada, altamente normatizadas, hierarquizadas, segregadas. Poucas universidades têm biblioteca pública aberta à comunidade, ao público: há dez anos UFSCar e UERJ eram as duas exceções, e parecem seguir sendo as únicas. A Unicamp chega ao extremo de bloquear a entrada em suas bibliotecas a quem não é aluno regularmente matriculado.
A UFABC bloqueia qualquer intruso logo na entrada do prédio. Fica difícil mobilizar a população na defesa de uma universidade que a repele e a trata como suspeita - e neste ponto não há qualquer culpa a ser atribuída ao Globo ou a Temer, a universidade pública cai por seus próprios deméritos. As pesquisas são majoritariamente para consumo interno e raros professores descem de seu pedestal para encararem as ruas - até porque têm pés de barros. Chauí até início do século, Safatle desde o retiro dessa, e mais recentemente Karnal são alguns dos raros exemplos de professores que saíram dar a cara a tapa - há, sim, aqueles que estabelecem diálogos menos midiáticos, diretamente com movimentos sociais e sindicatos, mas são poucos que tem capacidade para tal, por cacoete de formação: a maioria discursa, não desce para o debate e o diálogo franco.
Arrisco próximos capítulos: além da cobrança de mensalidade, a intensificação de parecerias em laboratórios de pesquisa com a iniciativa privada, como forma não apenas de captar recursos extras, como para aumentar o número de patentes e o lançamento de produtos no mercado. Boa parte dos professores-pesquisadores aceitarão esses termos, desde que não tenham seus rendimentos afetados. Para boa parte da academia, não há mais necessidade de manter a universidade pública tal como hoje, já que sua função de formar quadros para o Estado vem decaindo, e eles enviam seus filhos para estudar nos EUA ou na Europa: de lá, sem compromisso com agências brasileiras, sua prole pode fazer carreira acadêmica no exterior ou regressar para carreiras burocráticas mais promissoras no Brasil, que podem impôr suas vontades, perseguir adversários políticos e sambar em cima da constituição sem qualquer problema. Tais propostas são capazes de até mesmo gerar a impressão de maior proximidade entre universidade pública e sociedade - o que compensará, aos olhos desses, sua maior elitização e discriminação.
As propostas da grande imprensa - agora verbalizada pelo Globo, mas em outros tempos já vocalizadas por outros mafiosos midiáticos - são claramente reacionárias, mas encontram eco na sociedade - mesmo entre os egressos da universidade pública -, repito, graças à precariedade de sua reflexão e seu questionamento sobre si própria - não sei se por um narcisismo que não tolera críticas ou se por comodismo. Não por acaso, diante da celeuma causada pelo editorial, vem de fora da universidade uma das propostas mais sensatas (ainda que tardia): Jean Wyllys propõe "um tributo adicional para as faixas mais altas do Imposto de Renda (depois de mudar a tabela para que estas sejam pagas pelos ricos de verdade e não pela classe média) que alcance os cidadãos com alta renda que estudaram e se formaram numa universidade pública, e destinemos esse dinheiro a um fundo especial para abrir mais vagas e pagar bolsas de permanência para os estudantes mais pobres". Sobre essa proposta, penso apenas que tal tributo adicional não precisa esperar pela (necessária) reforma do IR: precisa acontecer já, antes que acabe por afetar somente (novamente) a classe-média. Aos que não querem pagar o resto da vida pelo ensino que tiveram, têm toda a liberdade para optarem por universidade particulares - essas, sim, com cobrança de mensalidades.
O que significa debater a universidade pública
Por fim, passa ao largo a real significação do debate sobre a universidade pública - ainda mais no atual contexto de crises. Cobrança de mensalidade e formas de financiamento são questões epidérmicas - ouso dizer de menor importância, ainda que não devam ser desprezadas. Quando discutimos universidade pública estamos discutindo, antes de mais nada, projeto de nação. A história da universidade pública no Brasil é reflexo dos projetos de nação que motivaram sua criação e suas mudanças (inclusive ainda estamos presos, em grande medida, na visão fundante da USP).
Perdemos, durante o governo Lula e o ministério Haddad, uma oportunidade ímpar de discutirmos a sério projetos de nação e perspectivas de futuro a partir de um ponto fulcral, a universidade pública - suas funções, sua relação com o país, a produção de conhecimento. As reformas de Lula apontavam numa direção razoável e a universidade pública se acomodou, se furtando, uma vez mais, a refletir sobre si própria. Não discutimos no momento ideal, mas o editorial do Globo e o governo golpista (espero que interino), dão nova oportunidade de pôr a questão no centro do debate nacional. Mais que discutir sobre mensalidade e financiamento, é preciso que a universidade pública brasileira se abra à democracia - interna e externa -, exponha sua função social, descubra novas formas de se inserir na realidade que a rodeia, popularize e compartilhe o conhecimento dentro dela produzido - sem medo de ser contradita e contestada em seus doutos saberes por periféricos e analfabetos que, sim, possuem muito conhecimento, mesmo sem ter passado pelo ensino oficial.
Se insistir em repelir a população que a sustenta como bárbaros que vão destruí-la, a universidade pública não tarda a perder sua razão de ser, se transformando nisso que a desenham: uma escola de nível superior que abre os melhores cargos na burocracia do estado e do mercado.

Importante para este texto, falar sobre o autor: Daniel gorte-dalmoro é bacharel em filosofia e sociologia pela Unicamp, mestre em filosofia pela PUC-SP, licenciado em filosofia por uma universidade particular. Também foi aluno de graduação na USP e na UFABC. Entre 2007 e 2010 foi um grupo de crítica de costumes da Unicamp, o Trezenhum. Humor sem graça. Foi editor da revista eletrônica Casuística. artes antiartes heterodoxias. É editor do Boletim SPM Informa e do Informativo Vai e Vem, do Serviço Pastoral do Migrante.
* Publicado quarta-feira, 03/08/2016 

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