quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Mito da Caverna



 Wagner Rocha*
A Caverna. Fonte: National Geographic 2007
 O que se evidencia no romance A caverna, do escritor português José Saramago, a exemplo de tantas outras obras de sua autoria, é a prática de uma literatura que não se intimida ao esmiuçar os dramas humanos, mas ao contrário, procura convertê-los ao máximo em possibilidade de reflexão. Trata-se de um livro que nos dá diversas chaves de leitura em que tudo o que nele se alude requer de nós o exercício de uma consciência crítica. A trajetória literária do seu autor permite-nos apontar que o conjunto dos seus escritos é permeado por um projeto humanista bastante fecundo, onde a palavra atua como um instrumento de expressão e de tradução das vicissitudes do mundo real. Em A caverna encontramos uma metáfora, uma forma de dizer e de figurar o domínio do poder econômico, a hegemonia tecnológica e a produção em série frente o trabalho manual produzido pelo ofício do oleiro.
No texto de apresentação (orelha) que acompanha a edição da obra publicada pela Companhia das Letras, Benedito Nunes nos adverte que “a anulação do trabalho manual ou artesanal pela tecnologia, tal poderia ser o resumo desse aspecto destrutivo do capitalismo em seu acme, convertido pelo romance numa parábola social”. Diante do exposto, convém salientar que essa “parábola social” encontra, de certa forma, a sua inspiração no conhecido “mito” ou “alegoria” da Caverna descrito por Platão no Livro VII, 514a – 517b, da República. Tal questão pode ser verificada logo na epígrafe do romance em que Saramago transcreve o seguinte trecho extraído do filósofo: “Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros, São iguais a nós”. Talvez o mito da caverna seja o escrito de Platão que mais se tornou conhecido e difundido nas diversas áreas do saber, desde a filosofia aos campos da política, da literatura, da arte e da pedagogia.
O Mito da Caverna. Fonte: Tiras do Maurício de Souza
Trata-se de uma narrativa que coloca em evidência o jogo analógico entre a luz e a obscuridade, o sol e as sombras, a sabedoria e a ignorância, a liberdade e o cárcere, a essência e a aparência, o simulacro e a verdade. De acordo com Henri-Irénée Marrou, “no sétimo livro da República, o célebre mito da caverna proclama o poder emancipatório do saber, que delivra a alma da incultura”. No que tange a este aspecto, é importante mencionar que o mito de Platão alude-se ao fato da necessidade de ensinar o homem a ser sábio e a não se deixar dominar pelos jogos da aparência, da falsidade transvertida em realidade.
Para esse filósofo, o mundo real não é o que vemos, o que percebemos e captamos através da nossa experiência sensível, sendo que tudo o que entendemos ser a realidade não passa de simulacros, contornos imperfeitos desta, ou seja, meras projeções. Neste caso, o homem de Platão é um iludido, um prisioneiro que, estando no interior da caverna, não conhece nenhuma outra coisa senão aquilo que ali se apresenta aos seus olhos e aos seus sentidos.  Evidentemente, o pano-de-fundo desta abordagem realizada poeticamente por Platão – mesmo que este via nas formas poéticas um entrave para se chegar à verdade – encontra-se numa questão que parece ser o fio condutor de toda a República: a dicotomia entre “mundo sensível” e “mundo inteligível”, ou seja, a categórica distinção entre o que pertence ao universo da razão e, consequentemente do conhecimento, e o que pertence ao universo de um pseudo-conhecimento sobre as coisas, algo distante e separado da inteligência. Para ele - e esta é a grande máxima do mito da caverna – somente a razão, propulsora da prática filosófica, é capaz de arrancar o homem do interior da caverna, libertando-o e conduzindo-o para fora dela, onde reside a luz da verdade. 
Saramago, ao utilizar-se da metáfora da caverna, não quis com isso atualizar o pensamento de Platão, transpondo-o para a nossa realidade contemporânea. Não se trata disso. Em sua criação literária esboça-se uma forma de comunicar e de questionar, colocando em xeque um determinado problema humano e social que atravessa a nossa época: o homem contemporâneo, habitante da caverna do consumo, seduzido pelo culto exacerbado das grandes tecnologias, encontra-se impedido de pensar. Prisioneiro de si mesmo, vivendo em meio às sombras da sua própria soberba, o homem se recusa a ver o mundo tal qual ele é, ou seja, a sua real essência.
Os personagens principais do enredo criado por Saramago, a saber, o oleiro Cipriano Algor e o guarda Marçal Gacho aparecem como uma espécie de pretexto a fim de colocar em evidência a situação desse homem contemporâneo frente ao mundo capitalista em que vive. Os personagens em questão são homens comuns, homens do povo, pertencentes à camada pobre da sociedade. São trabalhadores que se vêem diante de um enorme conflito interior quando se deparam com a rejeição por parte de um grande Centro econômico das peças de louça fabricadas pelo oleiro, pois as mesmas eram fontes de sustento das suas famílias. Aqui se observa o impasse entre dominantes e dominados.
Acontecimentos como este narrado no referido romance dão-se em decorrência do processo industrial provocado pela expansão do capitalismo que historicamente acabou por suplantar o trabalho manual, gerando a chamada “sociedade de consumo”. Segundo o pensador francês Jean Baudrillard, nesse tipo de sociedade os homens já não vivem mais entre si, mas sim rodeados de objetos, seduzidos pelas ofertas dos grandes centros comerciais, dos shoppings centers, dos hipermercados que lhes prometem a abundância e a exuberância. Nem sempre é a necessidade que leva o homem a consumir, mas o que o objeto consumido representa no âmbito das relações humanas. A sociedade de consumo coloca ao nosso dispor uma ideia de que somos livres para consumir, porém, ao mesmo tempo, responsabiliza-se por dar mais visibilidade às desigualdades sociais. Há uma falsa liberdade, sendo que, conforme nos mostra Saramago, estamos cada vez mais imersos no interior dessa caverna sem saber o que há, de fato, por trás desse pseudo-humanismo estabelecido pelo mundo do consumo.
Assim, verificamos que apesar de ter se inspirado no mito platônico, o escritor português – um comunista convicto, diga-se de passagem - não se ocupou em estabelecer a supremacia da racionalidade sobre os dados do sensível como fizera Platão, mas é justamente o sensível, o embate cotidiano, a vida empírica, que ganha relevância em sua obra.   
 * Doutorando em Filosofia pela UFMG; professor e chefe do Departamento de Filosofia da Unimontes
(1) Texto adaptado de uma comunicação oral apresentada no VI Simpósio Filosófico-Teológico da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, em agosto de 2009, Belo Horizonte (MG).

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