Sobre a
tal humanidade
Por Luis Felipe Miguel*
Governo Trump nos EUA coloca crianças em gaiolas. Foto: Agências de notícias |
Trump não esconde suas
políticas desumanas, que culminam, agora, com sua prisão de bebês. Pelo
contrário, faz questão de alardeá-las. Aquilo que nós percebemos como uma
selvajaria inominável, indesculpável, transita entre o público dele como uma
demonstração de "macheza". O cerne desta macheza é a absoluta
insensibilidade à dor dos outros, que prova que estes outros estão sendo
construídos como Outro absoluto, a quem a humanidade é negada. A política
desumana seria a única apropriada a quem não é considerado humano.
É o mesmo mecanismo que vemos em ação quando alguém aplaude Bolsonaro e sua
apologia à tortura. Ou o massacre de famílias palestinas pelo Estado de Israel.
Como é possível que esta identificação com a brutalidade esteja tão presente?
Não creio que seja um traço
da "natureza humana", até porque tendo a concordar com o que disse um
grande pensador: não existe natureza humana fora da sociedade humana. Temos que
investigar é o que abre espaço para isso nas nossas sociedades.
E, claro, temos que combater
este discurso como se fosse nosso pior inimigo - aliás, ele é mesmo nosso pior
inimigo. Outro dia esbarrei num vídeo, não lembro de quem, que
"ilustrava" as falas de Bolsonaro. O ex-capitão dizia que o Brasil
precisava de um guerra civil, o vídeo mostrava cenas de guerra civil. Ele dizia
que a morte de inocentes era o preço necessário a pagar pela limpeza do pais, o
vídeo mostrava imagens de crianças de colo atingidas por bombardeios. Ele
defendia a tortura, vinha o depoimento de uma sobrevivente dos porões da
ditadura contando o que foi infligido a ela e a seus filhos pequenos.
É a aposta de que esse
discurso "pega" também porque, para a maior parte de seus seguidores,
é uma abstração. Quando ganha concretude, seu horror se torna visível. É a
crença de que o choro dos bebês aprisionados por Trump vai tocar quem até agora
apoia suas atrocidades. Dá certo? Não sei. Gosto de imaginar que sim, que mesmo
nas piores circunstâncias o sentimento de nossa humanidade comum sobrevive e
pode ser alcançado.
*Luis Felipe Miguel é Doutor em Ciências Sociais
pela Unicamp, Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de
Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades.
Pesquisador do CNPq. Autor de diversos livros, entre eles Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp,
2014), Feminismo e política: uma
introdução (com Flávia Biroli; Boitempo, 2014), Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória
(Boitempo, 2018).
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