A universidade
não precisa de 'empreendedorismo'. Precisa de pensamento crítico
Por professor Luiz Felipe Miguel (UnB)*
Quando
eu estava terminando o doutorado, me preparando para ingressar na carreira
docente, recebi o telefonema de um ex-professor. Ele me convidava para ser
sócio de sua firma de consultoria. Explicou em que consistia a proposta,
enfatizou muito que o serviço era consultoria e não lobby e apresentou seu
argumento principal: “Você terá uma vida muito mais confortável”.
Eu ouvi com atenção e polidamente
recusei a oferta. Não sou nenhum asceta, quero ser bem remunerado pelo meu
trabalho. Mas o que a universidade me oferecia era muito mais do que isso: o
espaço para pensar com liberdade, para ser útil à sociedade, para contribuir na
sua transformação.
Mais de vinte anos se passaram. A
universidade brasileira mudou muito, de lá para cá, para o bem e para o mal.
Mas continuo insensível ao chamariz do “Future-se” do MEC: não quero a
oportunidade de ficar rico. Mesmo, aliás, que isso fosse de fato uma possibilidade
aberta, não uma ilusão para tolos.
Quero ter boas condições de fazer
meu trabalho. E a primeira condição é autonomia.
O governo Bolsonaro ataca esta
autonomia por um lado com a censura ideológica, por outro com o
subfinanciamento. Seu projeto é o pior dos mundos: uma universidade dependente
das vontades do mercado e, ao mesmo tempo, submissa ao controle dos donos do
poder.
A universidade não precisa de
"empreendedorismo". Precisa de pensamento crítico.
Os ingênuos podem perguntar: mas
uma coisa é incompatível com a outra? É, sim: o "empreendedorismo"
exige assumir como próprios os imperativos do mercado que devem ser alvo do
pensamento crítico.
A proposta do MEC de Weintraub é
bastante vaga, mas já dá para saber para onde leva. Subfinanciamento do ensino
superior. Entrega de dinheiro público para bancos gerirem. Darwinismo acadêmico
em que cabe ao mercado decidir quais são os mais aptos.
Não existe nada, absolutamente
nada, que não aponte na direção da privatização da universidade, de sua
desresponsabilização com a sociedade, de rompimento de seu compromisso com o
povo brasileiro.
Como bem escreveu ontem Antônio
Augusto, o caminho deve ser rechaçar liminarmente a armadilha lançada contra
nós: "Nada de se dispersar em infinitas discussões, nem levar a sério as
'propostas' do Vire-se. Ao contrário, devem ser ridicularizadas, pois não são
sérias, são irresponsáveis, destruidoras, e antipatrióticas".
Eu me pergunto se seremos capazes
de dar esta resposta. Até agora, nossas organizações reagiram mal ao golpe e ao
bolsonarismo. Resistem a admitir que o governo é formado por nossos inimigos e
continuam fazendo o teatrinho do diálogo republicano - por exemplo, quando
Bolsonaro declarou que as universidades não produzem conhecimento ou quando
Weintraub disse que as ciências humanas não servem para nada, saíram educadas
notas dizendo que eles estavam "mal informados", em vez da denúncia forte
de que era o obscurantismo falando.
A Andifes já anunciou que vai
formar "grupos de estudo" para analisar a proposta. No jornal, vi um
educador - de esquerda, filiado ao PCdoB - apresentando como principal
preocupação a transição do sistema atual para o mercantil.
Se é essa a nossa resposta,
estamos mal.
Não dá para pautar a discussão da
educação por um projeto que desprezou reitores, professores, estudantes,
especialistas, nenhum deles consultado na elaboração, para alinhavar meia dúzia
de dogmas ultraliberais e colocar a universidade sob gestão de bancos.
É hora de reafirmar com clareza
nosso compromisso básico: universidade pública, gratuita, laica, de qualidade e
socialmente referenciada. Nenhum projeto que negue esses valores merece
discussão.
*É doutor
em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor do
Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB). - Professor Luis Felipe Miguel (UnB) argumenta sobre o
"Future-se". O novo programa do MEC/governo Bolsonaro para
Universidades Pública, cujo objetivo do projeto "é aumentar a eficiência e
estimular a inovação da educação superior pública no país, promovendo maior
autonomia financeira"
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