Crônica de um
Natal que ainda vai voltar
Por Luis Nassif*
Passada a grande noite do pesadelo, em um ponto
qualquer do futuro haverá um reencontro no Natal brasileiro. Há de cair a ficha
do país.
Minha família, pelo menos o círculo mais próximo, não
pratica o discurso de ódio. Temos algumas diferenças, nenhuma no plano moral.
Antes, julgava ser um padrão normal de família classe média brasileira. Hoje em
dia, agradeço a Deus pelo presente. Tias, irmãs, filhos, netos, primos próximos,
todos preservam os princípios morais dentro dos quais fomos educados.
Há dissidências em algumas tias e primos mais
afastados, mas educação suficiente para não externar as divergências em
reuniões familiares.
O que me aflige, no contato com os bolsominions, é
justamente o plano moral. Apoiar uma pessoa intrinsecamente imoral, como Jair
Bolsonaro, é prova de falha de caráter. É compactuar com a imoralidade.
E, olhe, jamais dividi as pessoas em bons e maus, de
acordo com suas inclinações políticas. Mais que tolerância, sempre tive
profundo interesse pela divergência. É a divergência que traz novas
informações, permite reavaliar posições, de tal maneira que, no final da
polêmica, os dois lados saem mais sábios.
Aliás, foi isso que me ensinou minha caçula Dodó
quando, com 16 anos, saiu de um grupo de feministas maduras, que a utilizavam
para desconstruir artigos contrários. Deixou de lado um fã clube de amigas
adultas, que a cobriam de likes, por discordar da polêmica como instrumento de
guerra contra o inimigo.
Da neta Cacá, com pouco mais de 10 anos, ouvi a
seguinte indagação:
– Vovô, você fala para não termos preconceito contra
ninguém. Mas posso ter preconceito contra o preconceituoso?
Leia também: Natal com Jesus e sem papai noel! por
Dora Incontri
Foi autorizada.
Neste Natal, nos dividiremos entre as várias famílias,
os Nassif propriamente ditos, os Sarraf, do lado de minha mãe, os Mesquitas, do
lado das tias Nassif, que encontrarei em Poços de Caldas, os Aguirre, de
sobrinhos do primeiro casamento, vários grupos familiares que se encontraram ao
longo da minha vida, se juntaram e se tornaram uma comunidade única, porque
compartilhando os mesmos valores da tolerância e da celebração da alma
brasileira. Enfim, uma autêntica família brasileira, de descendentes de
libaneses, sírios, italianos, portugueses, brasileiros, caipiras brasileiros,
mas, acima de tudo, brasileiros.
Ao meu lado, a companheira Eugênia, que me ganhou no
primeiro encontro, ao ver o plástico na traseira de seu automóvel: “Guaranésia,
orgulho de sua gente”.
Mas o que fizeram com o interior, o que fizeram com a
classe média, o que fizeram com o Brasil? Depois do Natal, sigo para Poços de
Caldas e não sei o que irei encontrar. Não perdôo Sérgio Peru de ter se tornado
um bolsonarista e espero nem vê-lo por perto quando chegar em Poços. E tia, seu
sobrinho vai passar longe de sua casa, depois que soube que trata Bolsonaro
como “meu capitão”.
E não é pelas posições políticas, é pela imoralidade
de apoiar um imoral. À tia concedo a atenuante da ignorância.
Em outros tempos, meu avô Issa, udenista dos
carrancudos, era amigo do Sebastião Trindade, comunista e eletricista, que
tinha uma rotina semanal de visitar minha avó Marta, igrejeira convicta, para
conversar sobre santos.
Havia momentos de raiva, sim. Pelo que me contou a vó
Marta, meu avô comandou uma campanha inclemente contra o Dr. Martinho,
candidato a prefeito, que além de santo era o melhor amigo do meu pai, e
padrinho da minha irmã Inês. Ninguém se torna amigo de Carlos Lacerda sem sequelas.
A reação veio das amigas de Igreja da vó Marta, que
fizeram uma vaquinha para colocar um anuncio no Diário de Poços, com críticas
ao meu avô e defesa do dr. Martinho.
– E a senhora, como ficou nessa, vó?, indaguei dela.
– Ah, meu neto, eu tinha um dinheirinho guardado e
ajudei na vaquinha.
Eram tempos em que as mulheres comandavam silenciosas
revoluções familiares contra a agressividade dos maridos. E hoje, quando as
próprias esposas, donas de casa, estão impregnadas do ódio secular, que emergiu
das cavernas do bolsonarismo e invadiu os mais recônditos recantos familiares,
todas as revanches contra a vida forjadas no exercício diuturno do ódio?
A companheira se desiludiu com Guaranésia quando uma
sobrinha querida, frequentadora de missas dominicais, afirmou que queria ver
Lula morto. Como pode alguém desejar a morte de outro, com essa facilidade?
Como pode alguém que se pretende religioso defender a morte de alguém?
Um dos capítulos que mais me chocou, nesses tempos de
ódio, foi certa vez, no Rio de Janeiro, passando em frente ao apartamento de
Sérgio Cabral Filho. A esposa conseguira uma prisão domiciliar, para cuidar do
filho, que tinha menos de 10 anos. Em frente da casa, urubus e gralhas berrando
com violência imprecações para que a criança ouvisse. Algumas das gralhas
certamente eram mães de família. Mas incapazes de se condoer, nem digo com a
esposa de Cabral, mas com o filho.
O país emergiu das profundezas das senzalas, dos
porões, das salas de tortura e passou a celebrar publicamente o pau-de-arara, a
cadeira do Dragão, empalamentos, pimentinha, o pentatol sódico, os estupros e
todo o conjunto de práticas dos porões, que está na base da formação da família
Bolsonaro.
Mesmo assim, não passarão. Passada a grande noite do
pesadelo, em um ponto qualquer do futuro haverá um reencontro no Natal
brasileiro. Há de cair a ficha do país. Em consideração aos laços familiares,
os imbecis, imorais, ignorantes não serão cobrados por esses tempos de insânia
e bestialidade.
Todos lembrarão os antepassados, os momentos felizes
em que o lado civilizado do país aproveitava o Natal para reencontros,
reconciliações, celebrações.
*LUÍS NASSIF é um jornalista brasileiro. Foi colunista e membro do conselho editorial
da Folha de S. Paulo, escrevendo por muitos anos
sobre economia neste
jornal. Em abril de 2013, Nassif lançou o piloto do Jornal GGN, um jornal eletrônico, "o jornal de todos os
Brasis", um projeto jornalístico cujo propósito era aprofundar temas relevantes
pouco abordados pela mídia
convencional, tais como gestão, inovação, direitos sociais, justiça
de transição etc., além de fazer uma cobertura comentada das notícias do dia.
No mesmo ano, em outubro, fechou uma parceria de conteúdo do Jornal GGN com
o iG,
que por cinco anos hospedara o seu Blog do Nassif. Começou a também
publicar no portal uma coluna com análises políticas e econômicas de temas
apresentados e discutidos no GGN.
Posteriormente, o Jornal GGN tornou-se um portal independente,
dedicado à "produção de conteúdo crítico, a partir da construção coletiva
de notícias ligadas a cidadania, política, economia, cultura e desenvolvimento",
com a participação efetiva dos especialistas no conteúdo. O portal adotou um
modelo de jornalismo colaborativo, procurando, segundo Nassif, escapar da
"dicotomia esquerda–direita que tem caracterizado o jornalismo
online". O portal tem, ainda, como um dos seus propósitos
declarados, "a montagem de mini-redes sociais especializadas,
com os principais grupos de discussão — do setor público e privado — para
aprofundar os temas relevantes do Brasil do século XXI, cobrindo não apenas o
factual, mas as visões estratégicas de país".
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